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Cerimônia de casamento, música e outros gestos de amor: as histórias que aliviam a solidão nos ‘covidários’

Profissionais de saúde tocam músicas para pacientes, preenchem “prontuários afetivos”, criam “sino da alta” e fazem até celebração de casamento para diminuir a tensão e a solidão de pessoas com covid-19

O casal Tatiana dos Reis da Silva e José Luís Oliveira renovam os votos de casamento em uma cerimônia em um hospital de covid-19.
O casal Tatiana dos Reis da Silva e José Luís Oliveira renovam os votos de casamento em uma cerimônia em um hospital de covid-19.Divulgação
Beatriz Jucá

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A merendeira Tatiana dos Reis da Silva, de 36 anos, está com medo e desanimada. Internada em uma enfermaria para pacientes com covid-19 em um hospital público de Fortaleza, tem um catéter de oxigênio acoplado no nariz para ajudá-la a respirar, mas só consegue pensar no marido José Luís Oliveira, que também tenta se recuperar da doença em outra enfermaria do mesmo hospital. Os dois ―que nunca haviam se separado em duas décadas juntos e foram internados no mesmo dia― esperavam realizar o sonho de casar na igreja no ano passado, mas a pandemia do novo coronavírus impediu os planos. Agora, o vírus que penetrou o corpo deles deixa uma série de dúvidas sobre o futuro. “Essa doença deixa a gente apavorada. O que vinha na cabeça era o medo de perdê-lo”, conta Tatiane. No mesmo andar do hospital, José Luís comentava com profissionais de saúde sobre o 22º aniversário do casamento civil, que mais uma vez deveria passar em branco. Foi a deixa necessária para viabilizar o que parecia impossível: uma cerimônia religiosa no covidário.

No dia 29 de março, Tatiana era conduzida vagarosamente em uma cadeira de rodas pelo corredor do hospital por seus cuidadores, que cantarolavam a marcha nupcial. Vestia uma bata amarela como vestido. Na cabeça, um véu branco improvisado a partir da bata de paramentação dos profissionais de saúde. Sem daminhas, via deslizar um pouco mais à frente de si apenas o cilindro de oxigênio portátil que lhe ajudava a respirar. Não importa. Ela está prestes a cruzar a porta da enfermaria masculina onde o marido também se recupera de covid-19 para renovar os votos, desta vez diante de um padre, que os espera do outro lado da tela do celular. “Meu sonho era ter mais de dez padrinhos e madrinhas, e eu tive. Foram os profissionais de saúde”, lembra.


A “festa” não durou mais que 20 minutos diante das limitações e dos cuidados necessários em um covidário. “Um grande abraço a vocês. Felicidade. Saúde para todos nós”, deseja o sacerdote na cerimônia. Tatiana e José Luís ganharam até um pequeno bolo de casamento, preparado pelos nutricionistas com cuidado e atenção às restrições alimentares dos pacientes. A cerimônia improvisada, com direito a alguns balões brancos e azuis, só foi possível graças à articulação de enfermeiros, psicólogos e médicos do hospital que, sensibilizados com a história do casal, viram uma chance de concretizar aquele sonho quando vagou um leito da enfermaria dupla de José Luís, e ele ficou sozinho internado ali. “Foi lindo, um momento mágico”, define Tatiane, que acredita que o casamento improvisado ajudou até na recuperação do casal.

“Quando a gente fica sabendo de algo especial do paciente, a gente tenta fazer algo até para diminuir um pouco a solidão. Temos as chamadas de vídeo, mas ver a família e ter estes momentos é sempre muito bom para a ansiedade do paciente”, diz a psicóloga Bruna Rios, que participou daquele momento. “Ficamos todos muito emocionados”, lembra. Ações para amenizar a solidão e trazer algum conforto se multiplicam pelos covidários do país durante a dramática segunda onda da pandemia ―e ajudam também a trazer um pouco de leveza às tão exaustivas jornadas dos profissionais de saúde. No mesmo hospital em que Tatiana estava internada ―o Leonardo Da Vinci―, foi criado também o simbólico “sino da alta”. Quando o paciente se recupera, ele é levado até um pequeno sino dourado instalado em uma parede da recepção para mover a cordinha que o faz soar. Aquele som é um lembrete frequente para pacientes e profissionais da saúde sobre esperança e superação. E virou um momento simbólico, almejado por cada um que dá entrada ali. Na semana passada, o sino foi tocado por Tatiana e João Luís.

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Também naqueles corredores, enfermeiros e fisioterapeutas tocam instrumentos musicais para animar quem está internado. “Os plantões estão muito exaustivos e pesados, com muita gente chegando mal e morrendo. Convidei um fisioterapeuta para tocar comigo para tentar melhorar a energia. Acho que isso é mais um lado da enfermagem, que é cuidar e trazer conforto. A gente sabe o bem que isso faz pra eles”, conta o enfermeiro Marcos Oélio. Na sexta-feira da Semana Santa, ele preparou um ato especial. Caminhou pelos corredores tocando um saxofone enquanto um colega acompanhava a canção com um violão. Pelas portas entreabertas das enfermarias, pacientes acenavam e levantavam as mãos em agradecimento. “A gente faz achando que é algo tão simples e na hora vê como é importante. A toda hora me vinha um arrepio. Espero poder viver isso mais vezes”, conta Oélio ao EL PAÍS por telefone, no pequeno intervalo que fez para o almoço durante um plantão na UTI.

Neste leito está o amor de alguém

A milhares de quilômetros dali, no Distrito Federal, a médica reumatologista Isadora Jochims conversa com a família de um paciente com covid-19 como faz todos os dias para repassar informações sobre o estado de saúde dele. Ela trabalha em uma enfermaria do Hospital Universitário de Brasília, com 40 leitos para pessoas com quadro menos grave da doença, mas que também tem pacientes intubados à espera de uma vaga na terapia intensiva. “Se ele despertar quando reduzirmos os sedativos, o que ele gostaria de ouvir?”, pergunta despretenciosamente ao familiar de um homem que está intubado. Ouve uma vibrante gargalhada e certo tom de surpresa com a pergunta feita em meio ao boletim médico. “Que pergunta inesperada! Ele gosta de Raul Seixas.” Jochims descobriu ainda que o paciente é torcedor fanático do Palmeiras e que costumava colocar sons de passarinhos quando queria se tranquilizar. Aquela pergunta foi feita pela médica sem motivo claro, mas as respostas que ouviu lhe deram uma ideia: criar os chamados “prontuários afetivos” e tornar visível nas paredes que, naqueles leitos, se recuperam os amores de alguém.

Um papel colado próximo aos leitos traz informações pessoais sobre os pacientes.
Um papel colado próximo aos leitos traz informações pessoais sobre os pacientes.BRENO ESAKI (Agência Saúde DF)

Uma folha de papel ofício então foi colada na beira de cada leito. Ali vão se acumulando uma série de anotações incomuns aos prontuários usuais. Lembram o time do coração do paciente, apontam alguns traços da personalidade, os principais hobbies e costumes. Qual a atividade de lazer favorita? E a música que mais gosta de ouvir? Está tudo ali, reconstruindo aspectos da história de vida do paciente e dando espaço às memórias afetivas de cada um deles em um momento de tanta vulnerabilidade e solidão. “Na hora que coloquei o primeiro prontuário afetivo, houve comoção da equipe. Os enfermeiros e fisioterapeutas, que atuam mais no cuidado direto, passaram a colocar as músicas preferidas deles”, conta Jochims.

Acontece de vez em quando de um ou outro profissional de saúde estranhar as anotações, mas a ideia logo foi abraçada naquele e em outros hospitais do Distrito Federal. “Isso muda a vinculação com o paciente e aumenta a qualidade da assistência”, diz a médica. E assim os cuidadores se mobilizam até para comprar acetona e remover o esmalte desgastado de uma senhora com covid-19 que sempre gostou de manter suas unhas feitas e bonitas. “Coloquei a música pra um paciente e ele começou a dar sinais de que estava entendendo e que tinha ali uma coisa boa”, conta a técnica de enfermagem Ana Rakel Silva de Queiroz, referindo-se a uma piscada de olho ou um movimento de cabeça feito por pacientes com nível de sedação mais baixo. Ela diz que os prontuários afetivos têm feito bem não só a eles, mas que tem sido um estímulo capaz de renovar as esperanças da equipe.

Ação da médica Isadora Joshims em um hospital do Distrito Federal.
Ação da médica Isadora Joshims em um hospital do Distrito Federal.Reprodução

“Encontrei uma forma de eu mesma sobreviver a isso [pandemia] com a minha arte. E os outros profissionais ganharam uma energia extra e o cuidado com o paciente foi além do habitual”, conta Jochims, que também é artista visual e tem feito intervenções no covidário, escrevendo palavras e amor e compaixão com fitas de cetim e tachinhas. “Duas coisas me deixam mal: ouvir que estamos em uma guerra e que somos heróis. Não temos superpoderes. Afeto e amor é o que estamos precisando neste momento. Não estamos em uma guerra, somos movidos por amor e não ódio”, defende.

Na UPA, o paciente agora pode pedir música

Em uma unidade de pronto-atendimento de Fortaleza, profissionais de saúde se aproximam do leito de um homem e perguntam se ele aceita ouvir uma música. O paciente ―que usa o capacete Elmo, um equipamento criado para tentar melhorar a oxigenação do corpo― assente. E pede uma música do cantor Gonzaguinha. Um profissional de saúde começa a tocá-la no violão enquanto seus colegas o acompanham. “Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”, catarolam, enquanto o homem ergue as mãos ao alto e movimenta os braços como se dançasse. Cenas assim têm sido comuns em unidades deste tipo na capital cearense, em alas com pacientes menos graves e conscientes. O momento acontece todas as tardes e, quando não há profissional de saúde que saiba tocar um instrumento, uma caixinha de som é levada até o paciente. É o projeto Vitrola, que tenta levar um momento de descontração em meio à solidão de quem está internado com covid-19 e não pode receber visitas. Lá, os profissionais também lêem cartas enviadas por familiares e tentam ampliar o contato para além das visitas por videochamadas. Essas cartas também acompanham os pacientes durante a internação, sendo fixadas próximas aos leitos.

O que a senhora deseja antes da alta? Dançar!

Em um hospital no interior do Ceará, dona Cícera, de 72 anos, está prestes a receber alta. Durante os nove dias de internação em um leito de isolamento, mandava beijos e fazia coração com as mãos para o fisioterapeuta Arthur Rafael Augustin. Repetia muitas vezes a mesma pergunta: “Hoje tem?” E levava os braços junto ao corpo indicando uma dança. Arthur apenas ria. Quando chegou o dia da alta, o fisioterapeuta foi visitá-la. “Eu gosto muito de vocês. Me trataram muito bem”, ela dizia. Cantaram juntos uma música do cantor Roberto Carlos, deram as mãos e fizeram uma oração para celebrar o momento. Até que dona Cícera lhe pediu a famigerada dança antes de deixar o hospital. Arthur atendeu o pedido ao som de um forró colocado em uma caixinha de som. “Chorava eu e chorava ela. Estes gestos nos motivam mais a trabalhar todo dia”, disse ele em um vídeo que viralizou. “Mexe muito com a gente. Estar num ambiente tão tenso, diante de uma situação tão crítica, não tem como você não lembrar de sua mãe, de sua avó. Ali é o amor de alguém (...) Se cuidem porque quanto tudo isso passar, vamos poder abraçar as pessoas que a gente mais ama.”

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