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Festival de luxo no coração da Amazônia, um símbolo do descaso com a pandemia

Com ingressos de até 11.000 reais, evento do qual participavam turistas europeus, foi interrompido pela polícia. Dados mostram que fiscalização amazonense mirou mais bairros de classe média e periferia do que as zonas mais abastadas do Estado durante emergência sanitária

Polícia faz batida em casa flutuante no rio Negro, em outubro. Dados mostram que houve menos interrupções em áreas de luxo.
Polícia faz batida em casa flutuante no rio Negro, em outubro. Dados mostram que houve menos interrupções em áreas de luxo.Bruno Kelly

No país onde morrem mais de 3.000 pessoas a cada 24 horas por covid-19, brasileiros e turistas, a maioria europeus, não viram problema em pagar de 1.100 a 2.100 dólares, o equivalente a 6.100 e 11.700 reais respectivamente, para festejar no meio da floresta amazônica. O festival “Amazon Immersion”, com duração de cinco dias pelos rios do Amazonas, terminou em 6 de abril, na chegada a Manaus, quando foi interrompido pela Polícia Civil do Amazonas que interceptou a embarcação com 44 pessoas. Modelos brasileiros, homens e mulheres, alguns com carreira internacional, também estavam entre os viajantes, segundo as autoridades, que, no entanto, disseram não ter autorização para revelar as identidades dos participantes.

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Das 44 pessoas detidas, 18 eram estrangeiras de várias nacionalidades. Cidadãos da Grécia, Canadá, Israel, Suécia, México, Eslováquia, Polônia, Alemanha, Marrocos, Luxemburgo, Itália, Estados Unidos e França. Elas responderão em liberdade pelo descumprimento de medidas sanitárias, previsto no artigo 268 do Código Penal, depois de assinarem um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e estão liberados para retornar ao país de origem, onde poderão ser acionados mediante o decorrer do procedimento, que será encaminhado ao juizado especial.

O festival é um símbolo das questões éticas e morais envolvidas no combate da pandemia. Mesmo com toda informação disponível sobe contágios, o grupo chegou a visitar comunidades indígenas e ribeirinhas, além de participar de festas à beira do rio e dentro de barcos, sem máscara e descumprindo as regras de distanciamento. Cinco embarcações de luxo foram contratadas para o festival, algumas para hospedagem e suporte para equipamentos de luz e som. De acordo a Polícia Civil, promoters amazonenses participaram da organização do evento.

“É pela crença de que precisam satisfazer seus desejos para se sentirem existentes e reconhecidos em suas individualidades, que os indivíduos, mais ou menos conscientes, aceitam pôr em risco suas vidas e a vida dos outros”, avalia o sociólogo amazonense, Francinézio Amaral, doutorando em Sociologia e Antropologia pela UFPA. Eles diz que o comportamento está longe de ser exclusividade dos brasileiros, mas frisa que “em sociedades marcadas por problemas estruturais como desigualdade, como a brasileira, onde fragilidade dos serviços de saúde, educação, segurança e infraestrutura são latentes, os prejuízos causados pelas ações na esfera privada nas relações coletivas são maiores”.

Das 13 nacionalidades presentes na festa do barco de luxo no Amazonas, apenas três são de países contabilizam a marca de mais de cem mil mortos: Itália (112 mil), México (206 mil) e EUA (559 mil). No Brasil, são quase 370.000 mortos.

Em Manaus, a queda da incidência de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), um dos quadros mais comuns em casos mais graves de covid-19, foi interrompida com as medidas de relaxamento que vigoram desde fevereiro. Agora, as taxas apresenta níveis de altos, parecidos com os do primeiro pico durante a segunda onda, registrado entre 27 de setembro e 03 de outubro. “Foi assim que a tragédia de janeiro de 2021 foi gestada. Há uma narrativa do Governo do Amazonas de que está se preparando para uma terceira onda com a finalidade de dizer que a segunda onda está vencida, quando observamos que há ainda alta incidência de casos”, afirma o epidemiologista da Fiocruz Amazônia, Jessem Orellana. “É uma forma de afirmar que a terceira onda é um evento inevitável e, no geral, culpa da população. Aí começa a fazer fiscalização em bares, os mesmos que ele liberou há alguns dias, para consolidar esse discurso”, critica ele.

Desigualdade estrutural

Em Manaus, onde a primeira e segunda onda da pandemia de covid-19 colapsaram o sistema de saúde antes do restante do País, a desigualdade pode ser percebida no modo de tratamento e nos locais onde as operações do Estado contra festas clandestinas ocorrem com mais frequência. Das 40 festas clandestinas encerradas por ações de fiscalização na capital, entre setembro de 2020 e abril de 2021, segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública (SSP), sete ocorreram em áreas consideradas nobres na cidade ―as demais se concentraram em bairros de classe média e zonas periféricas.

“Há sim um tratamento diferenciado nessas operações. Fico extremamente surpresa em ver que as coisas só são cumpridas quando tomam uma grande proporção, quando as autoridades são instadas a tomar providencia, normalmente por meio da repercussão nas redes sociais. Veja que esses barcos com pessoas de fora na floresta estavam muito confortáveis em fazer esse evento aqui”, afirma a advogada Adriane Magalhães, que vem usando a própria conta no Instagram para pressionar autoridades.

Procuradora de Prerrogativas da OAB/AM e adjunta de Prerrogativas do Conselho Federal da OAB, Magalhães afirma que faz questão de formalizar todas as denúncias que posta junto aos principais órgãos de controle e polícia do Estado. “Mas as redes obrigam o Estado a dar uma resposta à sociedade quando há o clamor do cidadão.”

Em 27 de março, festa de aniversário do filho de um grande empresário do ramo de supermercados em Manaus, com direito a DJ trazido do Rio de Janeiro, repercutiu nas redes sociais provocando críticas, principalmente por envolver figuras conhecidas da cidade e pelo vídeo da Polícia Militar que foi até ao local, mas não encerrou a festa. Na segunda-feira, dia 29, após as várias publicações e cobertura da imprensa, a Polícia Civil divulgou que investigaria o caso. “Não culpo os policiais, sabemos que têm poucos elementos e estrutura à disposição para fazer esse trabalho, além de cumprirem ordens. Sabemos que a seletividade é estrutural. Quando a fiscalização é em bairro afastado ou em sítios na estrada, arrumam até ônibus para transportar todos os detidos”, questiona a advogada.

A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas informou que os locais de vistoria são definidos a partir de denúncias feitas ao 190 ou diretamente aos órgãos de fiscalização, assim como demandas encaminhadas por veículos e profissionais de imprensa ou por meio das redes sociais, o que totaliza até 600 denúncias por fim de semana. Em seis meses de operação, 500 pessoas foram detidas, segundo a SSP. A estimativa é que essas 46 festas clandestinas tenham atraído um público de 20 mil pessoas.

“A situação mais complicada nessa pandemia, primeiramente, não foi a privação de liberdade, mas como a formação de uma cultura de que o jovem era quase assintomático. Isso se deu logo no início, quando tudo ainda era desconhecido”, explica o psicólogo clínico Jorge Trajano, especialista em políticas públicas. “A lógica das festas, que tem endereço desconhecido, incita o perigo e isso é muito atraente do ponto de vista de juventude, é desafiador, questiona o que vem de cima pra baixo. Atendo famílias enlutadas que foram contaminadas pela presença dos em festas clandestinas.”

Trajano acredita que o fato de não ter política pública para o segmento de cultura e eventos também interfere na realização de festas. “Estão parados há um ano. Não existe apoio e nem perspectiva de retorno”, explica.

A ação que resultou na apreensão da embarcação de luxo e encerrou o festival partiu de denúncia por meio das redes sociais. Qual a lógica de postar algo que vai ser denunciado? “Essa é a cultura de exibicionismo, onde a postagem nas redes é feita, principalmente, para demonstrar sucesso, que está em posição de vantagem em relação ao outro e isso não é exclusivo das festas clandestinas. Veja que mesmo quem tomou a vacina deforma irregular fez isso. É o mundo da aparência que hoje impera em nosso meio”, afirma o psicólogo.

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