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Procurador-geral e chefe da AGU fazem pregação no STF em busca da vaga “terrivelmente evangélica” prometida por Bolsonaro

Em julgamento, Augusto Aras e André Mendonça, cotados pelo Planalto para posto no Supremo, fazem defesa da liberação de cultos e missas em pleno auge da pandemia. Gilmar Mendes diz que Constituição não tutela direto à morte. Análise será retomada nesta quinta

O presidente do STF, Luiz Fux, durante sessão virtual nesta quarta-feira.
O presidente do STF, Luiz Fux, durante sessão virtual nesta quarta-feira.Nelson Jr./SCO/STF
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Na fase aguda da pandemia de covid-19 em São Paulo os cultos religiosos estão proibidos. Mas, no Supremo Tribunal Federal, parece que não é assim. Respaldados por dois dos principais candidatos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao STF, o advogado-geral da União, André Mendonça, que falava em nome da União, e o procurador-geral da República, Augusto Aras, sete de oito defensores de instituições religiosas usaram da tribuna virtual do Judiciário para expor mais teses religiosas do que argumentos jurídicos. Em julgamento estava uma ação apresentada pelo Partido Social Democrático que tinha como objetivo derrubar um decreto do governador paulista, João Doria (PSDB), que proibiu o funcionamento de templos religiosos no Estado durante a fase mais restritiva de circulação por causa da escalada do novo coronavírus.

Em determinado momento, a sessão parecia uma pregação em que um tentava se destacar mais que o outro ao proferir discursos semelhantes aos de Bolsonaro. Em julho, o presidente indicará o substituto do ministro decano Marco Aurélio Mello, que se aposentará compulsoriamente do Supremo por completar 75 anos. O presidente prometeu colocar alguém “terrivelmente evangélico” no posto.

No dia em que o país registrou 3.829 óbitos por coronavírus, André Mendonça, que regressou nesta semana à AGU após uma passagem pelo Ministério da Justiça, disse que os cristãos estavam dispostos a morrer para defender sua liberdade religiosa. “Sobre essas medidas que estão sendo adotadas regionalmente. Não há cristianismo sem vida em comunidade, sem a casa de Deus e sem o ‘dia do Senhor’. Por isso, os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”. Mendonça, pelo cargo, falava em nome da União. Ignorou a questão da responsabilidade coletiva pelos contágio no momento em que até o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, fala contra aglomerações. O novo AGU ganhou uma recompensa: Jair Bolsonaro compartilhou em seu Twitter a sua fala, num sinal de diálogo com a base bolsonarista.


Já o procurador-geral Aras, indicado por Bolsonaro em 2019, defendeu que, assim como a ciência, a fé salva vidas. “Onde a ciência não explica, a fé traz a justificativa que lhe é inerente. Inversamente, onde a ciência explica a fé também traz o seu contributo. Não e à toa que a medicina está cheia de casos de placebos e casos de resistência que evoca entre muitas hipóteses não previstas na farmacologia ou em qualquer outro tratamento científico”, afirmou o procurador. Ambos defenderam a realização de cultos em templos religiosos. O procurador, contudo, ressaltou que deveria haver uma limitação na ocupação dos espaços. “Os templos são o asilo inviolável pelo Estado. São a casa na qual se realiza o culto coletivo”, ponderou.

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Nesta disputa pela cadeira vitalícia na Corte Suprema, Mendonça estaria meio passo à frente de Aras, caso Bolsonaro cumpra sua promessa de indicar para o posto alguém “terrivelmente evangélico”. O chefe da AGU é um pastor presbiteriano, Aras é católico. “O presidente já fixou o critério para a sua escolha. Se algum dos candidatos não se encaixar, ficará fora da disputa. O que o Bolsonaro quer não é apenas um evangélico, mas alguém que tome decisões que sejam do interesse desses grupos religiosos”, avaliou o advogado constitucionalista Camilo Onoda Caldas, diretor do Instituto Luiz Gama.

Outro especialista consultado pela reportagem disse que há claros sinais dessa disputa entre Aras e Mendonça para agradar a Bolsonaro. “Não dá para ser categórico que é uma contraprestação de serviço, mas há um alinhamento ao menos no discurso. Pelas falas do presidente conseguimos extrair uma linha de raciocínio que se reflete no discurso tanto do AGU quanto no PGR”, disse Igor Luna, especialista em direito administrativo e relações governamentais, sócio do escritório Almeida Advogados.

Bolsonaro é o principal opositor aos decretos regionais de lockdown como medida de restrição de circulação de pessoas para conter a disseminação de coronavírus. Nesta quarta-feira, em visita a Chapecó (SC), ele mais uma vez atacou os decretos, disse esperar que o Supremo mantenha o entendimento do ministro Kássio Nunes Marques, que permitiu a abertura de igrejas em Belo Horizonte, e reafirmou a liberdade da população está “acima de tudo”. “A nossa liberdade vale mais do que a nossa própria vida. Quem abre mão de um milímetro da sua liberdade em troca de segurança está condenado no futuro a não ter segurança e não ter liberdade”, discursou. Nunes Marques, católico e que já citou Deus em plenário, foi o primeiro indicado por Bolsonaro ao Supremo, no ano passado.

Citação bíblica e sem tutela à morte

O julgamento iniciado nesta quarta-feira teve apenas o voto do relator Gilmar Mendes, que já havia indeferido o pedido do PSD e mantido o fechamento das igrejas de São Paulo, como defendia o Governo Doria. Em seu voto, Mendes afirmou que a Constituição não tutela o direito à morte e fez duras críticas à gestão de Jair Bolsonaro na crise de saúde. “Ainda que qualquer vocação íntima possa levar à escolha individual de entregar a vida pela sua religião, a Constituição de 88 não parece tutelar um direito fundamental à morte”, criticou. “A essa sutil forma de erodir a normatividade constitucional, deve-se mostrar cada vez mais atento este STF. Tanto mais se o abuso do direito de ação vier sob as vestes farisaicas, tomando o nome de Deus para se sustentar o direito à morte”. Na tarde desta quinta-feira os outros dez ministros deverão apresentar os seus votos.

Na sessão desta quarta, não bastassem as pregações de Aras e Mendonça mais baseadas em textos religiosos que na Constituição, ainda houve advogado que tentou polemizar. Representando o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Luiz Gustavo Pereira da Cunha invocou um trecho da Bíblia Sagrada para provocar os ministros. “Para aqueles que hoje votarão pelo fechamento da casa do Senhor, cito Lucas 23, versículo 34: ‘Então ele ergue seus olhos para o céu e disse: ‘Pai, perdoa-lhe, porque eles não sabem o que fazem’”, disse. O PTB se manifestou na ação na condição de amicus curiae, uma espécie de assistente que pode se pronunciar nos autos e produzir documentos para subsidiar os votos dos ministros.

O presidente da Corte, Luiz Fux, se irritou com o caráter intimidador da manifestação. “É preciso, em nome da Corte, repugnar, movido por um sentimento ético, a fala do advogado que dirigiu-se à Corte invocando a declaração de Jesus em Lucas 23-34”, disse. “Essa misericórdia divina é destinada aos destinatários que se omitem diante dos males, e o STF, ao revés, não se omitiu, foi pronto e célere numa demanda que se iniciou há poucos dias atrás”, completou o ministro.

Fux ainda afirmou que o tema impõe ao Judiciário uma “escolha trágica” e que eles precisarão ter a responsabilidade para enfrentá-la. “Nossa missão de juízes constitucionais além de guardar a Constituição, é de lutar pela vida e pela esperança, e foi com essa prontidão que a Corte se revelou, na medida em que estamos vigilantes na defesa da humanidade”.

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