Rio Grande do Sul vive colapso da saúde, com 100% de UTIs ocupadas, sem leitos e sem horizonte de melhora

Aumento da infraestrutura para atender pacientes com covid-19 não alcança o ritmo da segunda onda e faltam braços para socorrer vítimas. Profissionais da saúde relatam exaustão e pacientes são atendidos em cadeiras: “Pessoas ficam mais de 24 horas sentadas”

Profissonais da saúde socorrem pacientes no CTI do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, que até o final da semana passada tinha 126% dos leitos para pessoas em estado grave ocupados devido ao avanço da pandemia.
Profissonais da saúde socorrem pacientes no CTI do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, que até o final da semana passada tinha 126% dos leitos para pessoas em estado grave ocupados devido ao avanço da pandemia.Clovis S.Prates

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O Rio Grande do Sul extrapolou sua capacidade física de atender pacientes com quadro graves da covid-19 no dia 3 de março, quando o índice de ocupação de leitos de UTIs superou pela primeira vez 100%. Na rede hospitalar pública, a oferta de leitos para pessoas com quadros críticos da doença mais do que dobrou desde o início da pandemia, há um ano, e uma nova ampliação ―com 40 leitos extras― está prevista para as próximas semanas. Mas desde o final de fevereiro essa infraestrutura é insuficiente para atender a demanda, que explodiu em consequência das aglomerações recentes, somadas ao ritmo lento da vacinação e à chegada das variantes mais contagiosas do coronavírus ao Estado. Faltam braços para atender tanta gente doente. “Do ponto de vista físico, até é possível fazer uma nova adequação no hospital, porque temos um prédio novo, cujos andares estão ficando prontos e poderiam ser ofertados. O problema é que a gente esbarra nos profissionais: não temos mais médicos, enfermeiros e técnicos para trazer”, afirma a médica Beatriz Schaan, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), que possui o maior volume de leitos exclusivos para pacientes com covid-19 entre as instituições de saúde da capital gaúcha.

O Estado mais ao Sul do Brasil vê seus hospitais colapsarem poucas semanas após a falência da saúde no Amazonas, no Norte. A última semana foi a mais letal no Rio Grande do Sul desde o início da pandemia, com 822 mortes confirmadas nos últimos sete dias ―quase o dobro de óbitos por covid-19 que o registrado na pior semana da crise em 2020. Nos últimos 12 meses, 13.370 pessoas morreram em decorrência da covid-19 nas cidades gaúchas, o número mais elevado entre os três Estados da região. Sem perspectiva de melhora no horizonte próximo, o governador Eduardo Leite (PSDB) aderiu de forma inédita o protocolo de bandeira preta (quando o risco de infecções é altíssimo), restringindo atividades econômicas e a circulação de pessoas em todo o Estado. “Não tem como expandir muito mais os leitos. Até porque 60% das pessoas que vão para uma UTI infelizmente não sobrevivem. Leito não é a garantia de não perder a vida. O que realmente ajuda é evitar que o vírus circule, e nós precisamos de cada um”, afirmou.

Faltavam 10 minutos para o horário marcado para a entrevista quando a médica Beatriz Schaan irrompeu em um corredor do Hospital das Clínicas, com pressa. Uma reunião de emergência fora marcada para o mesmo horário da conversa com o EL PAÍS e a coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Coronavírus do HCPA era peça central do encontro que definiria o remanejamento de profissionais do hospital para dar conta do volume crescente de pessoas com quadros graves da doença. “Os pacientes aportam na emergência em estado crítico, mas não tem possibilidade de levar para a UTI porque todos os leitos estão ocupados”, explicou.

Beatriz Schaan, coordenadora do GT de Enfrentamento ao Coronavírus do HCPA
Beatriz Schaan, coordenadora do GT de Enfrentamento ao Coronavírus do HCPATânia Meinerz

A exaustão dos profissionais é outra preocupação das autoridades gaúchas, que veem um esgotamento das equipes de saúde após doze meses de enfrentamento da pandemia. “A solução dos gestores foi ampliar a estrutura. Aqui, mais do que dobrou o número de leitos. Mas profissionais não aumentaram um sequer. Estamos trabalhando por três, o que gera muito sofrimento porque a gente não consegue estar em todos os locais ao mesmo tempo”, desabafa o enfermeiro Ismael Miranda da Rosa, na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Sapucaia do Sul (cidade vizinha de Porto Alegre), e vice-presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Estado.

Já o médico intensivista Douglas (que preferiu não ter seu nome verdadeiro publicado) se atrasou uma hora e meia para a entrevista, feita após o fim de seu turno em um hospital referência para politraumatizados na Região Metropolitana de Porto Alegre, que agora está tomado por pessoas com covid-19. “Não almocei ainda. Na verdade, nem tomei café da manhã hoje”, avisou no WhatsApp às 14h30 de quinta-feira, quando deixava seu local de trabalho.

“Deixamos de atender outros doentes”

A ampliação dos leitos para atendimento de covid-19 no Rio Grande do Sul é, em geral, feita de duas maneiras: ou de forma improvisada ou tomando espaço de tratamento de pacientes com outras enfermidades. Na última sexta-feira, por exemplo, a prefeitura de Porto Alegre começou a deslocar pacientes com dependência química e transtornos mentais do Hospital Vila Nova para um residencial terapêutico, de modo a liberar espaço para 100 novas vagas de tratamento ao coronavírus.

O hospital em que Douglas trabalha é a principal referência para politraumatizados da Região Metropolitana da capital gaúcha, mas há alguns dias as pessoas acidentadas são encaminhados para uma sala onde antes ficava o centro pós-cirúrgico. “Não tem como negarmos esse atendimento porque os municípios ao redor não contam com esse serviço. Mas neste momento, estamos com a sala lotada, não sei o que vamos fazer se chegar mais gente”, desabafa o intensivista. Dez leitos de trauma, outros dez de centro de terapia intensivo (CTI) e ainda seis macas foram monopolizadas para tratamento da covid-19. E há fila de espera por leitos de UTI ―em geral, as vagas abrem só quando morre alguém.

Na UPA de Sapucaia do Sul a situação é a mesma. Os seis leitos de observação, mais as duas macas da área vermelha e as três vagas de urgência pediátrica estavam ocupadas por pacientes contaminados pelo coronavírus no fim da semana. Outros quatro leitos foram remanejados para receber este público, mas diante da insuficiência de atendimento a equipe não teve outra saída a não ser improvisar um local onde 11 pacientes com covid-19 eram tratados em cadeiras, porque não havia mais espaço para que ficassem deitados. “São pessoas que ficam mais de 24 horas sentadas, porque nos hospitais não estão recebendo internações”, lamenta Rosa.

O enfermeiro Ismael Miranda da Rosa, vice-presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Estado.
O enfermeiro Ismael Miranda da Rosa, vice-presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Estado.

Sequer o Hospital de Clínicas, com orçamento federal e um contingente de residentes da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URFS), está livre dessa realidade de saturação. A estrutura para atender pacientes infectados com a covid-19 ―12 leitos na emergência, 105 em UTI e 82 em enfermaria está esgotada. Na véspera da entrevista, 49 pessoas eram atendidas de forma improvisada na emergência, incluindo uma área de poltronas. Com o aumento do fluxo, a coordenadora do GT de enfrentamento ao coronavírus do Hospital de Clínicas decidiu duplicar os pontos de oxigênio nesta área, instalando Ts nas saídas de O2. Na UPA de Sapucaia, a cada três horas um enfermeiro passa correndo entre os pacientes com dificuldade respiratória para trocar os cilindros que garantem ar para esses doentes. “Só que o quadro clínico deles é de UTI, e nós não temos pressão suficiente de oxigênio para casos como esses”, alerta o enfermeiro.

Neste sábado, a ocupação do CTI do Hospital de Clínicas era de 126% da capacidade de lotação. “Mais do que isso não tem como ofertarmos. Já estamos na nossa máxima contingência. Tem hospital transformando o centro obstétrico em leito covid, tem leitos cardíacos virando leito covid e assim vai... Quer dizer que toda essa reestruturação é possível na teoria, mas com isso estamos deixando de atender outros pacientes”, alerta a médica Beatriz Schaan.

O problema maior, entretanto, é com a falta de mão de obra especializada. O HCPA já fez cinco concursos emergenciais recentes para contratar intensivistas. “Mas não há mais profissionais no mercado”, atesta a médica. A solução foi remanejar os recursos existentes: médicos que atendiam na emergência foram deslocados para a UTI exclusiva com pacientes de coronavírus. No lugar da emergência, foram colocados cardiologistas que, por sua vez, foram substituídos por outros profissionais, muitos deles residentes ainda em formação. “Tentamos colocar sempre quem tem treinamento mais apropriado para quadros gravíssimos. Mas já passamos de todas as contingências de empréstimo de um lugar para outro”, admite a médica. “Em algum momento se perde qualidade no atendimento.”

Também aumentou o número de trabalhadores contaminados, mesmo com a vacinação prioritária para trabalhadores de saúde. O resultado é que os bancos de horas dos profissionais explodiram. Se usualmente não há autorização para ninguém fazer mais do que 20 horas extras, no Hospital das Clínicas já há casos que acumulam dez vezes mais do que o limite de trabalho.

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“Muita pressão emocional”

Na UTI de covid-19 improvisada do hospital de politraumatizados da Região Metropolitana de Porto Alegre, o médico intensivista Douglas corre contra o tempo. Antes, ele dividia os pacientes com outro colega intensivista, agora deslocado para a segunda ala de tratamento de pacientes infectados pelo Sars-Cov-2. “As equipes estão sobrecarregadas e há muitos trabalhadores que não têm a perícia que essa área requer, porque estão atuando fora de sua especialidade. Estamos sob muita pressão emocional.”

Mesmo para um médico como ele, acostumado a situações extremas, a covid-19 impõe desagradáveis surpresas. “Estamos intubando pacientes que estão conscientes, que leem as notícias e têm noção da gravidade da situação. Eles estão fatigados, gementes, com a saturação no limite, mas sabem que pode ser a última vez que estão acordados”, relata. Por isso, quando a situação de um doente piora muito, a equipe dá uma pausa. “A gente senta com o paciente e, junto com a psicóloga, explicamos a necessidade de intubação, apesar dos riscos, inclusive de óbito. Também falamos longamente com as famílias, pedindo o apoio delas. E então fazemos uma visita virtual entre a família e o paciente. Muitas vezes, essa é uma conversa de despedida. Muitas vezes ele sabe que não vai sobreviver e eu vou ser a última pessoa a ter interação com ele.”

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