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Após anos de massacres, hegemonia das facções reduz homicídios em prisões do Amazonas e Roraima

Estados, palco de rebeliões recentes com dezenas de mortos, registraram ao menos uma morte violenta em 2020. Queda de homicídios nas ruas também aponta para papel de facções

Gil Alessi
Presos amotinados durante rebelião na penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, em 2017.
Presos amotinados durante rebelião na penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, em 2017.STRINGER
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De 2016 a 2019 o Brasil viveu uma verdadeira era dos massacres nos presídios. O fogo da rivalidade entre facções criminosas alimentado durante anos pelo encarceramento em massa e pelo descaso do poder público deixou um rastro de morte com requintes de crueldade de Roraima ao Amazonas, passando por Rondônia, Pará, Rio Grande do Norte e Ceará. Imagens de detentos decapitados e calcinados se espalharam por grupos de WhatsApp e foram transmitidos ao vivo na televisão, expondo para a população uma realidade que ninguém quer ver.

O ano de 2020 tinha tudo para ser explosivo dentro do sistema penitenciário. Às condições já insalubres de superlotação e precariedade somou-se a pandemia do novo coronavírus. Além de deixar um rastro de mais de 220 presos mortos em todo o país, a covid-19 levou à suspensão das visitas —um dos poucos alentos da população carcerária—, aumentando ainda mais a pressão em um ambiente já instável. Mas nada aconteceu, com exceção de alguns motins contra as políticas de isolamento total imposto aos presos e fugas pontuais. Na verdade, alguns Estados conseguiram inclusive zerar as mortes matadas em presídios.

O fato de massacres não terem varrido os presídios do Brasil, no entanto, não quer dizer que a situação dos direitos humanos dentro deles melhorou. De acordo com um relatório da Pastoral Carcerária, o número de denúncias de tortura contra encarcerados cresceu entre março e outubro de 2020, de 53 casos no mesmo período de 2019 para 90. A realidade pode ser ainda pior, tento em vista que devido às medidas adotadas contra a covid-19 nas unidades, o acesso de advogados, defensores e agentes da pastoral aos presos —e consequentemente a coleta de denúncias— foi comprometida.

Seja como for, as autoridades penitenciárias e Governos clamam para si a responsabilidade e os louros pelo fim dos massacres, apontando melhorias no controle e na estrutura das unidades prisionais. Mas essa paz atrás das grades também é reflexo de uma nova configuração do xadrez das facções criminosas. O Amazonas é um exemplo disso. O Estado foi palco de dois grandes massacres carcerários, no Complexo Prisional Anísio Jobim, o Compaj, em 2017 e 2019, com um saldo de ao menos 70 mortos, a maioria integrantes do Primeiro Comando da Capital. Foram mortos na ponta de facas improvisadas e esquartejados por detentos do Comando Vermelho e da Família do Norte, então aliados.

A mortandade destes anos contrasta com os dados de 2020, quando o Estado teve pelo menos um homicídio dentro de suas unidades prisionais, de acordo com dados da Secretaria de Administração Penitenciária —entidades que atuam na área afirmam que este dado é subdimensionado. A sombra da hegemonia do grupo criminoso fluminense paira como um dos fatores para o fim da mortandade. “Dentro do sistema eu diria que 99% dos presos agora são ligados ao Comando Vermelho”, explica o coronel Marcus Vinícius Oliveira de Almeida, responsável pela pasta. “A Família do Norte foi praticamente extinta: seus remanescentes foram incorporados ao CV. E atualmente o PCC é muito incipiente dentro dos presídios, muito menor do que era em 2017.”

Para o coronel Almeida a relativa paz atrás das grades é fruto de uma série de investimentos e melhorias feitas pelo Governo para “retomar” o controle do sistema das mãos dos presos “faccionados” após os massacres, o que inclui o isolamento das lideranças no Instituto Penal Antônio Trindade, em Tarumã. “Hoje o crime organizado não dá mais as cartas nos presídio”, afirma. “É muito difícil que hoje ocorra uma rebelião de grande porte no Amazonas, em virtude de toda a infraestrutura que foi feita.” De acordo com ele, o Grupo de Intervenção Rápida, unidade tática utilizada dentro das unidades prisionais em situações de crise, chegou a frustrar algumas tentativas de “atos violentos” de presos contra presos, mas nada na escala do que ocorreu em 2017 e 2019.

Nas ruas, o impacto desta hegemonia do Comando Vermelho também se fez sentir no ano passado, com a redução —ainda que temporária— dos conflito armados entre grupos rivais. Os números de Manaus surpreendem: em 2020 a capital teve queda recorde de homicídios culposos, de 840 em 2019 para 657, uma redução de 21,7%, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas. Foi a primeira vez desde 2011 que a capital manauara teve menos de 700 casos de assassinato em um ano. Mas 2021 começa com incertezas quanto à continuidade destes bons indicadores: em fevereiro houve um aumento sensível, ainda que não quantificado oficialmente, no número de homicídios no bairro da Compensa, que já foi palco de enfrentamentos entre facções no passado.

O Amazonas não é uma exceção quando se trata de Estados que viram a ascensão da violência nos presídios e agora vivem a queda de mortes violentas nas penitenciárias —e fora delas. Assim como o vizinho, Roraima também foi palco de grandes massacres em seu sistema prisional. Em outubro de 2016 presos ligados ao PCC invadiram ala reservada para os rivais na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, na zona rural de Boa Vista, e mataram 10. Este foi um dos primeiros sinais de que a então duradoura aliança entre a facção paulista e o CV estava na berlinda. Meses depois, em janeiro de 2017, novo banho de sangue na mesma unidade: 33 detentos assassinados em outra rebelião. Mas em 2020 tudo mudou. Segundo a Secretaria de Justiça e Cidadania, responsável pelo sistema penitenciário no Estado, nenhum preso foi vítima de homicídio no ano passado.

Em Roraima, importante para a entrada de drogas no país uma vez que faz fronteira com a Venezuela —que mesmo não sendo um grande produtor de cocaína é visto como território livre para a passagem de drogas—, quem dá as cartas continua sendo a facção paulista. “Temos principalmente PCC aqui. Mas em números é difícil dizer [qual o percentual de presos do grupo criminoso], apesar de eu achar que atualmente a predominância é de não faccionados dentro do sistema penitenciário”, explica o secretário André Fernandes Ferreira, responsável pelos presídios de Roraima, que passaram por uma intervenção federal para tirar o controle das unidades das mãos do crime. “Com a intervenção federal nos presídios acabou a comunicação entre eles. Acabou entrada de celular. E quem estava na rua se sentiu perdido, sem receber ordens de dentro. Isso levou a uma redução grande na criminalidade. Sentiram a presença do Estado no sistema prisional e nas ruas”, afirma Carlos Alberto Melotto, promotor de crime organizado, tráfico de drogas e lavagem de capitais do Ministério Público de Roraima.

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Nas ruas do Estado também houve uma redução nos números da violência quando comparado o ano de 2019 com 2020: homicídios dolosos caíram de 174 para 149. Mas nem todos os bons resultados parecem ser reflexo de políticas públicas. “Preocupa esta presença massiva do PCC aqui, porque são empresariais, são muito mais organizados do que o CV. Essa hegemonia deles em Roraima é um poder absoluto, e no momento existe uma acomodação, a situação está bastante tranquila. Para eles é bom, ‘não estou brigando com ninguém, estou fazendo o tráfico, vendendo muita droga e não estou tendo que entrar em confronto’”, diz o promotor, que cita como analogia a tese de que um dos fatores da queda dos homicídios em São Paulo é justamente o poder paralelo consolidado nas mãos de uma única facção, o PCC. “Mas é tudo instável. O CV pode resolver subir do Amazonas, por exemplo, e nós temos uma presença ainda residual da FDN no sul do Estado”. No xadrez do crime, às vezes as peças se movem de forma silenciosa até o próximo xeque-mate.

Errata: A versão anterior desta reportagem informava que não houve nenhuma morte no sistema penitenciário do Amazonas em 2020. O dado foi passado pelo próprio secretário de Administração Penitenciária do Estado, coronel Marcus Vinícius Oliveira de Almeida. O número, no entanto, estava incorreto: houve um homicídio no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em 10 de fevereiro. O secretário se desculpou pelo equívoco.

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