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Participação da iniciativa privada vai aprofundar desigualdade e caos da vacinação no Brasil

Pesquisadores defendem fila única pelo SUS para que imunização seja capaz de desafogar hospitais. Sírio Libanês, um dos principais hospitais privados do país, se posiciona contra participação de particulares

Profissional de saúde prepara uma vacina contra covid-19 da AstraZeneca.
Profissional de saúde prepara uma vacina contra covid-19 da AstraZeneca.FABIO MOTTA (EFE)
Beatriz Jucá

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A intrigante via expressa de Israel para a vacinação contra a covid-19
People, wearing protective face masks, walk at Champs Elysees avenue near the Arc de Triomphe in Paris amid the coronavirus disease (COVID-19) outbreak in France, January 25, 2021. REUTERS/Gonzalo Fuentes
Europa pressiona laboratórios por lentidão na entrega de vacinas contra covid-19
AME1205. SAO PAULO (BRASIL), 25/01/2021.- Dos mujeres caminan frente a un puesto de venta de cocos hoy, en Sao Paulo (Brasil). En los estados de Sao Paulo y Amazonas, dos de los más afectados por la covid en Brasil, rigen a partir de este lunes nuevas medidas de distanciamiento social para intentar frenar la pandemia. EFE/ Fernando Bizerra
Interior pode empurrar São Paulo ao colapso se novas restrições contra covid-19 não surtirem efeito

A sinalização do Governo Federal de que não deverá apresentar objeções à compra de vacinas contra a covid-19 pela iniciativa privada pode trazer prejuízos sanitários ao país em um cenário de escassez global dos imunizantes. Especialistas apontam que o Governo precisa garantir a compra de doses suficientes para proteger a sua população e seguir uma fila única de prioridade para garantir que as populações mais vulneráveis sejam vacinadas primeiro, desafogando o sistema de saúde e estancando a dura marca de mais de 1.000 mortes diárias que o país enfrenta ―segundo os números medidos pelo consórcio de imprensa, o Brasil tem a maior média móvel de mortes em seis meses. Fugir dessa fila única, avaliam, pode ampliar a já caótica campanha de vacinação brasileira. Sem coordenação nacional efetiva ou previsão sólida da chegada de novos lotes pelo Plano Nacional de Imunizações (PNI), Estados têm tomado suas próprias decisões sobre quem vacinar primeiro diante da baixa quantidade de doses disponíveis e tentam eles mesmos negociar novos estoques diretamente com laboratórios enquanto cobram o Governo por um cronograma.

O Governo Federal distribuiu até o momento pouco mais de 7,33 milhões de doses aos Estados. Outras 4,98 milhões estão em trânsito, segundo o Ministério da Saúde. A soma supera 12 milhões de doses dos imunizantes da AstraZeneca/Fiocruz e da Sinovac/Butantan ―suficientes para vacinar apenas uma pequena fatia dos 210 milhões de habitantes do país, considerando o regime de duas doses de cada imunizante. A expectativa é de que, em fevereiro, mais 15 milhões de doses sejam disponibilizadas: 5 milhões produzidas pelo Butantan e 10 milhões de doses prontas da vacina da AstraZeneca a serem importadas da Índia. O cálculo do Governo prevê 100 milhões de doses a serem entregues pela Fiocruz até julho, mas a entidade já admitiu um atraso do cronograma pela dificuldade de importar a matéria prima para produzi-la, embora esta questão já tenha sido solucionada. Já o Butantan diz que cumprirá a entrega de 46 milhões de doses contratadas pelo Ministério da Saúde até o fim de abril, e Governo finalmente confirmou que comprará outras 54 milhões pré-acordadas com o instituto.

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O Governo Bolsonaro já disse não apresentar objeções a uma eventual negociação de 33 milhões de doses da vacina da AstraZeneca por empresas privadas. Metade dessas doses seriam doadas ao PNI “a serem aplicadas seguindo o calendário geral estabelecido pela pasta” e as demais estariam restritas à imunização dos funcionários destas empresas, “respeitando os grupos prioritários estabelecidos pelo Ministério da Saúde, sem nenhum escopo comercial”, segundo nota do Governo.

O debate em torno dessa possibilidade levou a própria AstraZeneca a se apressar em negar que esteja negociando com o setor privado nesta semana. A farmacêutica sofre pressão da União Europeia para cumprir o calendário de entrega das doses. A Pfizer também já emitiu nota afirmando que, neste momento, negocia apenas com Governos. As principais entidades privadas do país também se pronunciaram. O presidente do Hospital Albert Eistein, Sidney Klajner, vê chances de que vacinas contra a covid-19 cheguem a redes privadas de saúde no início do segundo semestre ainda que defenda que isso só ocorra quando o problema de escassez de doses seja superado, segundo O Globo. Já nesta sexta-feira, o Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês emitiu parecer contrário à participação do setor privado na vacinação. “Ao desrespeitar uma fila única para um bem escasso e necessário a todos, priorizando indivíduos com maiores privilégios ou maior poder em detrimento de indivíduos que possam mais se beneficiar, compromete também a solidariedade que gera a coesão social necessária para viver em sociedade”, diz o texto.

Paralelamente, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) indica negociações avançadas para a compra de cinco milhões de doses da vacina da Bharat Biontech, da Índia. A previsão é de que possam chegar às clínicas privadas brasileiras em abril, após registro da Anvisa, conforme noticiou o jornal Valor Econômico. A entidade vê a empreitada como uma “chance real de contribuir com o Governo na cobertura vacinal, utilizando da saúde suplementar para desafogar os gastos públicos”. Mas especialistas discordam.

O advogado e médico sanitarista Daniel Dourado vê crescer uma narrativa e surgir um movimento do Governo em favor da aquisição de vacinas contra a covid-19 pela iniciativa privada. “É antiético em um país desigual como um Brasil colocar como critério quem pode pagar. Mas tem um problema maior, de natureza sanitária e epidemiológica”, aponta. “Toda vacina que chegar ao país precisa ir para os grupos prioritários pelo SUS para diminuir o risco de morte e a pressão sobre o sistema de saúde”. Dourado afirma que permitir a compra de vacinas privadas neste momento não ajudaria o SUS, já que existe um cenário global de escassez de imunizantes , com os grandes laboratórios sem conseguir dar conta da alta demanda mesmo com o aumento de suas plantas produtivas. A situação tem preocupado inclusive países europeus que já contrataram doses suficientes para toda a sua população. “O Brasil, neste cenário, está especialmente muito pior. Não temos nem a vacina nem contratos suficientes para atender os grupos prioritários. Precisaríamos de cerca de 110 milhões de vacinas para estes grupos”, considera Daniel, que acredita que há um risco real de faltar vacina.

Mesmo que metade das doses adquiridas pelo setor privado seja direcionada ao SUS, Dourado vê prejuízos. “O Governo não pode se dar ao luxo de vacinar antes os jovens mesmo que seja para uma retomada da economia porque vai faltar para os idosos e profissionais de saúde, que têm mais risco de se infectar e agravar. O Governo não pode se dar ao luxo de abrir mão de nenhuma dose”, defende. Ele diz que, no contexto atual, Estados e municípios podem e devem requisitar doses que eventualmente sejam adquiridas pelo setor privado para serem aplicadas pelo sistema de saúde público. Não se trata de um confisco, e as empresas teriam que ser indenizadas. “Seria mais caro. Ainda assim vale mais a pena do que gastar com leito de UTI e com respirador e ter mais gente morrendo. Não vejo nenhum cenário em que a vacinação privada possa ajudar neste momento”.

A enfermeira epidemiologista Ethel Maciel, que participou do grupo para a formulação do plano nacional de vacinação contra a covid-19, concorda. “Se tivesse vacina sobrando, não teria problemas da iniciativa privada adquirir as doses. É um problema porque estamos em uma pandemia e precisamos garantir acesso igualitário quando a gente tem escassez de produto”, argumenta. Maciel explica que as campanhas de vacinação têm grupos prioritários e metas que precisam ser cumpridas para chegar à proteção coletiva. O posicionamento também é seguido pelo Conselho Nacional dos Secretários Estaduais da Saúde (Conass), que diz que a disponibilização de imunizantes pela iniciativa privada vai contra o princípio de universalidade do SUS. “A imunização deve seguir critérios técnicos e não o poder de compra”, defende, em nota. “A proteção dos mais suscetíveis é a melhor forma de reduzir internações e casos graves”.

Os grupos prioritários devem incluir os mais vulneráveis à doença, seja por maior exposição ou pela maior tendência de apresentar manifestações mais graves pela doença. O Brasil já vive um cenário caótico com a falta de uma efetiva coordenação nacional da campanha, e os Estados estão vacinando grupos diferentes, conforme decisões locais. Além disso, governadores também tentam negociar de forma paralela com laboratórios para tentar aumentar o quantitativo de doses. O Governo Federal, por sua vez, diz que está “empenhado em adquirir todos os tipos de vacinas disponíveis e aprovadas pela Anvisa”, mas não tem apresentado novos contratos de aquisição.

“O Ministério da Saúde tem obrigação de comprar, não é uma escolha”, diz Dourado, que vê uma estratégia de omissão do Governo enquanto incentiva compras pela iniciativa privada. “Tentam vender como uma grande vantagem de economia e não é. O SUS precisa ter todas as doses. O Governo está sendo omisso se existe essa possibilidade [de aquisição por empresas privadas]”, acrescenta o advogado.

Para os especialistas, o cenário indica que faltarão vacinas para toda a população e que as chances são muito remotas de chegar a uma “imunidade de rebanho” ou coletiva neste ano. Os grupos prioritários devem, então, ter prioridade absoluta. Dourado diz que uma leitura da situação pode ser no sentido de tentar viabilizar a vacinação nas indústrias e empresas privadas como tentativa de retomar mais rapidamente a economia. O ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou nesta semana a importância da vacinação em massa para esta retomada. “Proporcionalmente, o beneficio [de vacinar trabalhadores das empresas] é bem menor que vacinar profissionais de saúde e idosos, por exemplo. Isso pode gerar um efeito da economia voltar, e as pessoas voltarem a circular mais. O problema é que as pessoas mais vulneráveis à doença [com mais risco de agravar e ir a óbito] não estarão imunizadas”, indica.

Os especialistas também afirmam que a iniciativa privada só deve poder adquirir doses quando o Governo brasileiro garantir vacinas suficientes para a maioria da população. “No momento, a única forma da iniciativa privada ajudar é oferecendo pontos de apoio para vacinação. Precisamos ter uma fila única, gratuita e pelo SUS. Uma fila dupla neste momento só vai atrapalhar”, finaliza Dourado.

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