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Big Ben no centro de mais uma polêmica do Brexit

Boris Johnson propõe badaladas para comemorar a saída do Reino Unido da União Europeia, mas a administração do Parlamento se opõe

Rafa de Miguel
A torre do Big Ben, em Londres, nesta sexta-feira, cercada de andaimes.
A torre do Big Ben, em Londres, nesta sexta-feira, cercada de andaimes.DANIEL LEAL-OLIVAS (AFP)

O Brexit demonstrou sua capacidade de contaminar até os símbolos mais venerados do Reino Unido. No alto da Torre Elisabetana, no lado noroeste do Palácio de Westminster (sede do Parlamento Britânico), há um relógio de mais de 160 anos conhecido popularmente como Big Ben. É o nome do grande sino que marca as horas, mas pela tradição popular também se tornou o nome do relógio e quase da própria torre. Qualquer turista que tenha visitado Londres nos últimos dois anos não pode esconder sua decepção quando contempla a gaiola de andaimes que circunda a torre, por causa das obras de restauração às quais está sendo submetida. O mostrador do relógio continua visível, mas não é a mesma coisa.

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Com essa incrível habilidade que o primeiro-ministro Boris Johnson tem para soltar a primeira genialidade que lhe vem à cabeça e recuar mais tarde se as consequências forem adversas, na terça-feira, levado pelo entusiasmo, convidou os cidadãos britânicos a “bung a bob for a Big Ben bong” (um endiabrado trava-língua que viria a significar algo como “sacudir a corda para que o Big Ben dê uma grande badalada”) para comemorar a realização do Brexit em 31 de janeiro. Johnson mostrou triunfalismo e os eurocéticos replicaram com entusiasmo. O primeiro-ministro chegou a sugerir que seria fácil arrecadar milhares de libras em alguns minutos. Mas os serviços administrativos do Palácio de Westminster devolveram o primeiro-ministro ao terreno da realidade. No estado atual da restauração seria necessário construir um piso provisório no campanário e fazer testes de segurança com o sino. Custo total da experiência: 140.000 euros (cerca de 646.000 reais) e pelo menos duas semanas de trabalho extra. A isto se deveria acrescentar o atraso nas obras de restauro, o que significaria cerca de 120.000 euros a mais por semana. Ao menos 380.000 euros a mais de custo total, embora as estimativas mais pessimistas o elevem para meio milhão.

Mas não há nada mais poderoso do que uma ideia que adquire impulso. Um grupo de deputados conservadores gostou da proposta e o mais eurocético deles, Mark Francois, tão populista quanto inteligente, pôs mãos à obra. Através da logística já existente da organização Standup4Brexit (Levante-se em defesa do Brexit), começou uma campanha de arrecadação de fundos. Mais de 10.000 pessoas aderiram e mais de 180.000 euros já foram arrecadados.

O Governo britânico agora lava as mãos e diz que deixa o assunto nas mãos da Câmara dos Comuns. Seu novo speaker (presidente), Lindsay Hoyle, sugeriu que Downing Street apresente na próxima segunda-feira uma moção de defesa das badaladas triunfais do Big Ben. Até agora, obteve o silêncio como resposta.

Os serviços administrativos do Parlamento rejeitaram o uso dos recursos arrecadados para que se possa usar o relógio. Disseram que a manobra não tem precedente e que “a Câmara dos Comuns já tem meios próprios para aprovar os recursos necessários para o seu funcionamento e para preservar seu papel constitucional em relação ao Governo. Qualquer nova forma de financiamento deveria respeitar os princípios de propriedade e de controle adequado dos gastos públicos”, responderam.

Problemas que não existiam

Nada como uma resposta legal e burocrática para que os ânimos da imprensa conservadora se acirrem. “Algo profundamente vergonhoso aconteceu em nosso país. As causas não são claras, mas em um ato de extrema mesquinhez a elite que nos governa decidiu que, chova ou faça sol, o Big Ben não deve fazer soar seu sino”, escreveu Charles Day no semanário The Spectator, o veículo de comunicação de referência dos conservadores.

“O clássico gol contra de Johnson e algo que diz muito pouco sobre o estado atual do país. Se há tantos desesperados para fazer soar o sino, por que não usam uma gravação? Apenas alguns milhares de pessoas ouvirão o relógio, enquanto continua havendo gente sem-teto morrendo dentro da estação de metrô que fica logo abaixo”, comenta John Grace no progressista The Guardian.

Johnson tem uma legislatura complicada pela frente e lhe convém eliminar problemas, especialmente aqueles que não existiam e que ele sozinho provocou. O Governo teme que, se embarcar nessa aventura, talvez as obras não cheguem a tempo e só consiga colher um confronto estéril com o Parlamento. E que o mais conveniente, com toda a probabilidade, é deixar o venerado Big Ben em paz.

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