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Renúncia do Governo e proposta de Putin para se perpetuar no poder sacodem a Rússia

Saída de Medvedev e seu gabinete abre caminho para as mudanças anunciadas pelo presidente, que propôs como novo chefe do Executivo o responsável pelo Serviço Federal de Impostos, Mikhail Mishustin

María R. Sahuquillo
Putin e Medvedev durante reunião nesta quarta-feira no Kremlin.
Putin e Medvedev durante reunião nesta quarta-feira no Kremlin.Alexei Nikolsky (AP)
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Vladimir Putin abre caminho para uma transição. E o primeiro capítulo para isso é ter um novo Governo. O primeiro-ministro da Rússia, Dmitri Medvedev, e seu Gabinete renunciaram nesta quarta-feira, poucas horas depois que o presidente russo propôs, em seu discurso anual sobre o estado da nação, mudanças “substanciais” na Constituição que enfraqueceriam os poderes de um eventual sucessor. Horas depois, o presidente propôs como novo primeiro-ministro o chefe do Serviço Federal de Impostos, Mikhail Mishustin.

As propostas de mudanças anunciadas por Putin, que deverão ser submetidas a um referendo, estabelecem novos requisitos, mais duros, para liderar o país e fortalecem o papel do Parlamento e de um renovado Conselho de Estado. O anúncio de Putin e esta crise de Governo alimentam especulações de que ele busca outro cargo para se manter no poder depois de 2024, quando termina legalmente seu mandato.

Medvedev, que ocupou fielmente o cargo de primeiro-ministro em vários mandatos desde 2012, disse que a renúncia visa a abrir espaço para que Putin realize as mudanças constitucionais propostas. “Essas emendas, quando forem adotadas, significarão mudanças significativas não só em vários artigos da Constituição, mas também no equilíbrio de poder”, afirmou.

Medvedev, aliado de Putin, anunciou sua renúncia em um discurso transmitido pela TV estatal ao lado do presidente, que o agradeceu por seu trabalho. Depois de governar como presidente por dois mandatos iniciais (2000-2008), Putin colocou Medvedev em seu cargo entre 2008 e 2012, para contornar a proibição de ser chefe de Estado por mais de dois períodos seguidos. Durante aqueles quatro anos, o atual presidente foi primeiro-ministro. Depois, voltou a trocar de cargo com Medvedev.

O até agora primeiro-ministro assumirá um cargo criado para ele: vice-chefe do Conselho de Segurança, comandado pelo presidente russo.

“Estas são mudanças muito sérias no sistema político”, ressaltou Putin por volta do meio-dia para uma plateia de 620 senadores e deputados, além de numerosos convidados da elite do país. O líder russo propôs emendar a Constituição para aumentar a autoridade da Duma e do Conselho da Federação (as duas Câmaras legislativas russas), que será encarregada de nomear o primeiro-ministro e os ministros do Governo — até agora, apenas aprovava as nomeações do presidente. “[A reforma] aumentará o papel do Parlamento e dos partidos parlamentares, os poderes e a independência do primeiro-ministro”, afirmou quase ao final de seu discurso de 80 minutos, dedicado principalmente a questões sociais. Um comentário que reforçou a possibilidade de que Putin se torne primeiro-ministro novamente.

Em um pronunciamento que, segundo vários analistas, estabelece as bases para a transição no país, Putin não só falou em reduzir os amplos poderes atuais da presidência, mas também em limitar a dois, no total, os mandatos. Atualmente, a Constituição russa proíbe apenas dois períodos “consecutivos”, o que permite a Putin estar em seu quarto mandato presidencial, depois de ter intercalado esse cargo com o de primeiro-ministro.

Putin propôs também o endurecimento dos requisitos para alguém ser candidato a presidente ou a governador: devem ser vetados aqueles não morem na Rússia há 25 anos, que possuam — ou tenham possuído — nacionalidade estrangeira ou que tenham (ou tenham tido) autorização de residência em outro país.

Com as várias modificações, Putin, que tem 67 anos e está no poder há duas décadas, asseguraria que ninguém ocupe o poder durante tanto tempo quanto ele. O atual presidente é a pessoa que por mais tempo governou a Rússia desde Josef Stálin (na União Soviética). Sua sucessão e o papel que desempenhará o homem que controla todo o poder é uma questão vital para o país.

“A Rússia entrou em seu período de transição de poder antes do previsto”, opina a cientista política Tatiana Stanovaia, fundadora do grupo de análise R. Politik. “Putin está se preparando para deixar a presidência — seja em 2024 ou até mesmo antes —, e está procurando criar um mecanismo de segurança para seu sucessor em caso de conflito. Ao mesmo tempo, está se desfazendo de Medvedev, que se tornou tóxico para a elite e a população em geral. Isso deve tornar o período de transição seja mais suave”, diz. O até agora primeiro-ministro tem uma popularidade de 37,9%, segundo o instituto estatal de pesquisas Vtsiom (dados de dezembro). A de Putin, embora já tenha variado muito, é de 70,3%.

Em uma iniciativa que vários analistas veem como outra possível saída para o futuro do líder russo, Putin propôs definir na Constituição o papel e os poderes do Conselho de Estado — órgão consultivo que reúne representantes de todas as regiões da Rússia e é chefiado pelo presidente —, que atualmente tem um papel meramente cerimonial. Para esses analistas, se o conselho for fortalecido e obtiver poderes significativos, poderia ser a posição escolhida por Putin. Um cenário que faz mais sentido com uma presidência sem tantos poderes como a atual. Um modelo como o adotado por Deng Xiaoping, que governou a China de 1978 a 1992, e por Nursultan Nazarbaiev, que, apesar de ter renunciado à presidência do Cazaquistão depois de quase 30 anos, continua tendo poder em questões-chave.

Direito internacional

O presidente russo, que está lutando por aumentar seus índices de aprovação em um país com a economia estancada e a população cansada com o deterioramento do nível de vida, propôs outra mudança significativa: que as normas da Constituição prevaleçam sobre as normas e exigências dos acordos internacionais. “A Rússia só pode ser e continuar sendo a Rússia como um Estado soberano. A soberania do nosso povo deve ser incondicional”, ressaltou. “As exigências do direito e dos acordos internacionais, assim como as decisões dos organismos internacionais, podem funcionar no território russo apenas na parte em que não limitem direitos e liberdades da pessoa e do cidadão e não contradigam nossa Constituição”, acrescentou. As mudanças deverão ser aprovadas em um referendo, o primeiro desse tipo desde 1993.

A proposta de reforma constitucional feita pelo presidente russo provocou uma situação rara, com um dos maiores abalos políticos em anos. É a primeira vez na segunda década de Putin no poder que o Governo renuncia em bloco, embora tenham ocorrido casos do tipo durante seus dois primeiros mandatos. Com o anúncio da renúncia, o rublo e o índice agregado da Bolsa de Moscou despencaram, mas pouco depois de recuperaram.

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