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Com emprego em consultoria, Sergio Moro turva seu futuro político e volta a por ética em xeque

Decisão de se tornar sócio da Alvarez & Marsal, que tem entre seus clientes empresas que foram julgadas por ele na Lava Jato como a Odebrecht, é novo abalo em figura do herói ilibado. OAB faz advertência

O ex-ministro da Justiça Sergio Moro.
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Primeiro foi o abandono da toga de juiz e a entrada como ministro da Justiça no Governo do presidente Jair Bolsonaro —eleito após a condenação e ordem de prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por ele, divulgação de trechos da delação premiada do ex-ministro da Fazendo Antonio Palocci em meio à campanha. Depois veio a Vaza Jato, série de reportagens produzida pela site The Intercept Brasil em parceria com outros veículos de comunicação, entre eles o EL PAÍS, que mostrou indícios graves de parcialidade nos julgamentos que ele realizava na Operação Lava Jato em Curitiba a partir da troca de mensagens com procuradores da força-tarefa. Aí teve a saída do Governo federal com uma denúncia de tentativa de interferência do presidente na Polícia Federal, acusação que segue em investigação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) até o momento sem conclusão ou rumo certo. Agora, com o anúncio de sua entrada como sócio-diretor na consultoria internacional Alvarez & Marsal, que tem entre seus clientes empresas que foram julgadas por ele na Lava Jato como a Odebrecht, Sergio Moro despede-se senão de vez, ao menos temporariamente da vida pública. É essa avaliação de aliados, adversários, políticos envolvidos nas articulações para as eleições de 2022 e analistas ouvidos pelo EL PAÍS, além das entrelinhas do pouco que o próprio ex-juiz, ex-ministro e agora consultor falou publicamente sobre o assunto.

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Nenhum dos movimentos listados acima traz qualquer indício de ilegalidade —tirando as mensagens da Vaza Jato, cuja validade legal estão há meses à espera de avaliação do STF a pedido da defesa de Lula, que acusa Moro de parcialidade. Apesar disso, a cada um desses passos Moro foi questionado e saiu com sua imagem de “herói” na luta contra a corrupção e bastião moral arranhada. Ele é alvo de questionamentos à esquerda e à direita do espectro político, quando não dos dois lados ao mesmo tempo. A avaliação é a de que ele acumulou um passivo por ter participado do Governo Bolsonaro e saiu do embate com o presidente menor e a nova guinada profissional tampouco ajuda. Para um político que acompanha de perto a movimentação de articulação de candidaturas presidenciais de 2022, Moro retirou-se espontaneamente da disputa. “Vai ficar muito difícil em uma campanha eleitoral com esse histórico todo”, diz. “Acho que ele percebeu que o horizonte na vida pública estava muito incerto para ele, e resolveu aproveitar uma boa oportunidade profissional. Pegou todo mundo de surpresa mas dá para entender, não o condeno.” .

A entrada de Moro na consultoria que já faturou 17 milhões de reais com o trabalho na Odebrecht, além de ter pego de surpresa o mundo político e a opinião pública, chamou a atenção da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) para possíveis conflitos éticos e legais. “Notificamos Vossa Senhoria para que, no exercício das funções que passará a desempenhar na empresa supramencionada, não incorra em violação aos preceitos éticos-disciplinares”, diz um ofício enviado a Moro na quarta-feira pelo presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, Carlos Kauffmann. O advogado afirma que o ofício tem caráter preventivo, não está afirmando que Moro incorrerá na prática. “Ele fica proibido de praticar a advocacia, e por quê? Por que a consultoria da qual ele agora faz parte não é um escritório de advocacia e não pode prestar nenhum serviço de teor jurídico a nenhum cliente”, afirma Kauffmann ao EL PAÍS.

A medida faz parte de uma ofensiva mais ampla da OAB Brasil e suas seccionais regionais contra a atuação de grandes consultorias internacionais em questões jurídicas de seus clientes, o que é proibido na legislação brasileira. “Não falo especificamente do caso deles, mas é muito comum que essas grandes empresas de consultoria acabem prestando também serviços de consultoria e orientação jurídica, prática ilegal que a OAB tem combatido. Várias empresas grandes já foram notificadas e alguns advogados que trabalham nelas respondem a processos no tribunal de ética de suas seccionais”.

A OAB passou ao EL PAÍS um relatório com dezenas de empresas, de startups a grandes consultorias multinacionais, que foram notificadas pelo órgão por incorrer na prática. O material começou a ser montado em setembro e foi atualizado nesta quinta-feira. Empresas públicas que contrataram este tipo de serviço casado, como Petrobras e BNDES, estão na mira da OAB. A Alvarez & Marsal não integra a lista, mas a contratação do ex-ministro chamou a atenção na entidade. “Nós estamos combatendo isso muito forte. Procedimentos disciplinares, cancelamento de registros e vamos propor uma alteração na lei para que a prática deixe ser uma contravenção penal e passe a ser tratado como um crime mais grave”, afirma Ary Raghiant Neto, secretário-geral adjunto da OAB e corregedor do órgão. “O mercado brasileiro é cobiçado pela advocacia mundial, é um mercado de mais de 50 bilhões de reais por ano”, afirma Felipe Santa Cruz, presidente da entidade.

Nas redes sociais, Moro negou qualquer conflito de interesses. “Ingresso nos quadros da renomada empresa de consultoria internacional Alvarez&Marsal para ajudar as empresas a fazer coisa certa, com políticas de integridade e anticorrupção. Não é advocacia, nem atuarei em casos de potencial conflito de interesses”, escreveu em sua conta no Twitter. Na consultoria, Moro vai atuar na área de Disputas e Investigações da empresa em nível global, com base na sede da empresa em São Paulo. O foco do trabalho será o desenvolvimento de políticas antifraude e corrupção, governanças de integridade e conformidade e políticas de compliance, conforme afirma a empresa no comunicado em que anunciou a contratação. A reportagem não conseguiu entrar em contato com Moro para uma conversa sobre o assunto.

Procurada pelo EL PAÍS, a assessoria de imprensa enviou nota onde afirma que a “Alvarez & Marsal não presta serviços de assessoria e consultoria jurídicas”. “A consultoria conta com escritórios de advocacia parceiros para tratar da parte jurídica dos projetos”, diz o comunicado. Para além da questão de reserva de mercado da advocacia, há ainda a questão de conflito de interesses. À Folha, a empresa já havia dito que avaliará caso a caso se há conflito na atuação de Moro em relação às empresas atingidas pela Lava Jato. Indicou que, a princípio, não há veto a essa possibilidade. Além da Odebrecht, a Alvarez & Marsal atende outras três empresas atingidas pela operação: a OAS, a Queiroz Galvão e a Sete Brasil, do setor de petróleo.

A empresa onde Moro começou a trabalhar atende é especializada na reestruturação de empresas em dificuldades financeiras, na gestão de crises e em administração judicial de companhias em recuperação judicial ou que já decretaram falência. É conhecida no mercado por suas táticas agressivas na obtenção de resultados e metas. Quando comandou a reestruturação operacional da Editora Abril em 2018, por exemplo, a consultoria aplicou uma estratégia que deixou pelo menos 1.200 funcionários demitidos da editora sem receber seus direitos trabalhistas total ou parcialmente, tudo dentro da lei. Cerca de um mês após assumir a gestão do grupo, a Alvarez & Marsal fez a demissão em massa e, cerca de dez dias depois, conseguiu na Justiça a recuperação judicial, transformando os demitidos em credores trabalhistas. Em nota, a assessoria de empresa enviou nota onde afirma que “a recuperação judicial é um mecanismo legal, e foi a opção que melhor se apresentou para dar fôlego para a empresa buscar meios de se recuperar financeiramente e se manter operacional até o momento.”

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