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João Campos e Marília Arraes chegam empatados à eleição em disputa épica e emocionante no Recife

Primos estão emparelhados na pesquisa de segundo turno, com 35,1% para o candidato do PSB e 35% para a petista, mostra Atlas Político, num racha da esquerda e da família herdeira de Miguel Arraes

Barcos com bandeiras de políticos na bacia do Pina, ao lado de favela de palafitas.
Barcos com bandeiras de políticos na bacia do Pina, ao lado de favela de palafitas.Alexandre Gondim

Há uma fratura na esquerda brasileira, que deve repercutir em 2022. Os protagonistas desse embate são dois jovens que disputam o segundo turno da eleição no Recife. De um lado, João Campos (PSB), defensor de uma hegemonia que dura 14 anos no cenário pernambucano e oito na capital do Estado. De outro, Marília Arraes (PT), a desafiante, que rompeu com parte da família, tenta se tornar uma liderança e a primeira prefeita da cidade. Ambos são jovens ―ele tem 27 e ela, 36―, estão no primeiro mandato como deputados federais e são herdeiros do ex-governador Miguel Arraes (PSB), considerado um ícone entre os democratas pernambucanos. Marília é neta e João é bisneto. A petista é filha de Marcos, um dos filhos de Miguel Arraes. O pai de João, o ex-governador e ex-presidenciável Eduardo Campos (PSB), é filho de Ana Arraes, outra filha de Miguel, ou seja, irmã de Marcos.

A disputa por si só já seria épica pelo parentesco. Mas Recife chega às vésperas do segundo turno sem saber qual dos dois tem mais chance de levar a prefeitura da capital pernambucana. Pesquisa do Atlas Político mostra Campos com 35,1% das intenções de voto, contra 35% da prima Marília Arraes. A pesquisa projeta 27% de votos brancos e nulos, e 2,9% de eleitores que ainda não sabem em quem votar. Em votos válidos, excluídos brancos e nulos, Campos tem 50,1% e Marília, 49,9%. A pesquisa, que ouviu 750 pessoas entre 20 e 25 de novembro, tem margem de erro de 4 pontos percentuais para mais ou para menos, e 95% de confiança, o que deixa claro que os recifenses só saberão quem será seu próximo prefeito quando a contagem de votos acabar.

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Esta é uma eleição de mágoa e ressentimento familiar em que Ana Arraes, a avó paterna de João ―e ao mesmo tempo, tia de Marília― e também conselheira do Tribunal de Contas da União, já teve de pedir para que as memórias dos mortos (Miguel e Eduardo) fossem respeitadas. A fala acabou sendo explorada na campanha de Marília na sexta-feira. Depois da repercussão negativa, Ana disse que a declaração dada em uma entrevista em 2019 foi tirada de contexto. É uma disputa com tons shakespearianos, mas que coloca acima de tudo o confronto de dois grupos políticos que uma hora estão juntos, na outra, separados. Agora, esta separação é reforçada por uma série de duros ataques pessoais. O pai de João, Eduardo Campos, morreu num acidente trágico em plena eleição presidencial de 2014, durante a queda de um avião no litoral de São Paulo.

Como efeito prático, o embate PT x PSB no Recife deve selar mais uma separação das duas siglas para as disputas do Governo do Pernambuco e da Presidência, daqui a dois anos. Neste cenário, haverá uma avenida a ser preenchida pela direita, que, mesmo se dispersando em cinco candidaturas que se autoflagelavam, conseguiu reunir 43,11% dos votos no primeiro turno. Os principais representantes deste grupo foram Mendonça Filho (DEM) e Delegada Patrícia (Podemos). Chamada por alguns de “a capital do Nordeste”, Recife é a nona maior cidade brasileira, terceira nordestina, com 1,6 milhão de habitantes.

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Outra pesquisa, do instituto Datafolha, divulgada nesta quinta-feira, mostra que os dois candidatos estão tecnicamente empatados na disputa pela preferência do eleitorado, com uma leve vantagem para Marília. Ela tem 52% das intenções de votos válidos. João, 48%. Na terça-feira, outro instituto, o Ibope, apontava que a vantagem numérica era de João: 51% a 49%. As vantagens estão dentro margem de erro dos dois levantamentos, que é de três pontos percentuais para mais ou para menos. Como as pesquisas são feitas por empresas distintas com metodologias diferentes, não podem ser comparados.

O tom da campanha eleitoral, que começou cordial entre os primos, degringolou ao fim do primeiro turno, assim que Marília passou a evoluir nas pesquisas de intenções de voto. Naquela etapa, João ganhou 60 pedidos de direito de resposta ou de retirada de peças publicitárias de seus adversários. “Fui agredido desde o início por todos os meus opositores, inclusive pela atual adversária no segundo turno, de maneira muito forte”, disse o concorrente. Na segunda etapa, foi ela quem ganhou 15 dessas ações. O crescimento de Marília ao longo da disputa só ocorreu após ela assumir o vermelho de seu partido, o PT, e trazer para a propaganda eleitoral as figuras do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seu avô Miguel Arraes (que não era da legenda). Passou também a usar um coração, para dizer que ela pregava o amor, não o ódio. “A militância petista parece que acordou depois de muito tempo”, diz a cientista política Priscila Lapa.

O PT governou o Recife entre 2001 e 2012. Desde então, perdeu duas eleições seguidas para o PSB, mas se aliou a ele oficialmente na eleição estadual de 2018 e extraoficialmente na presidencial, quando se absteve de apoiar a candidatura de Ciro Gomes (PDT). Dois anos atrás, a direção nacional petista interveio para impedir que Marília lançasse seu nome para a sucessão pernambucana em troca do apoio do governador Paulo Câmara (PSB) à reeleição de Humberto Costa (PT) ao Senado.

A candidata à prefeitura do Recife Marília Arraes em visita ao bairro do Arruda.
A candidata à prefeitura do Recife Marília Arraes em visita ao bairro do Arruda.PH Reinaux/Divulgação

Nesta eleição, Marília tentou esconder a sigla para evitar uma onda antipetista, vista em diversas cidades desde 2016, e também para poder mostrar que tem um currículo próprio. Fez sua carreira no PSB enquanto Eduardo Campos ainda era seu principal líder. Elegeu-se vereadora em 2008 e 2012 pela legenda. Em 2014, rompeu com seu tio, Eduardo, porque ele lhe tomou a direção da juventude socialista e a entregou para o filho João Campos, que tinha 19 anos na época. Foi quando ela ingressou no PT, por onde se elegeu vereadora em 2016 e deputada dois anos depois. Na atual eleição, sua estratégia foi a de tentar colar em seu adversário a fama de imaturo, inexperiente e que pode ser manipulado pela mãe, Renata Campos, e pelo atual prefeito Geraldo Júlio (PSB), um dos órfãos políticos de Eduardo. Ainda o chamou de frouxo, o que para alguns parece ser uma afronta monumental.

Renata nunca se lançou candidata. Atua intensamente nos bastidores. No Recife a figura dela é vista por alguns como uma espécie de Catarina de Médici, a rainha consorte da França que manipulou três de seus filhos que foram reis no século XVI. Nos tempos atuais, nas redes sociais, ela é apelidada de Cersei Lannister, em referência à rainha que teve influência sobre dois filhos reis de Westeros no seriado ficcional Game Of Thrones.

Entre os que criticam a ação de Renata nos bastidores estão o cunhado dela, o advogado Antônio Campos, e o ex-deputado estadual Carlos Lapa, que foi líder do Governo de Miguel Arraes. O ex-parlamentar enviou uma carta a Marília em que diz que a mãe de João Campos é “ambiciosa” e “capaz de tudo” para destruir a carreira da petista. Já o advogado, um neobolsonarista que está há quatro anos rompido com esse núcleo familiar, diz que Renata é a responsável pela cisão da família. “O núcleo político pós-Eduardo Campos fez uma aliança com Renata Andrade Lima, e qualquer pessoa que possa despontar como outras lideranças são combatidas e perseguidas, como é o caso de Marília Arraes, independentemente de sua filiação partidária”, afirma à reportagem.

Ao trazer a figura da mãe de João para o centro da disputa, Marília mexeu com os brios do adversário. Em resposta, ele revidou o ataque. Orientado pelo marqueteiro argentino Diego Brandy, que trabalhou em campanhas de Eduardo e Geraldo Júlio, o peessebista tentou vinculá-la aos escândalos de corrupção do PT. Não atacava Lula, porque o ex-presidente ainda é bem avaliado no Estado, mas dizia que o Recife não merecia ser a única capital brasileira a ser governada pelo partido e mostrou imagens de petistas que foram investigados em alguns escândalos, como o ex-ministro José Dirceu ou a deputada federal Gleisi Hoffmann. Também veiculou peças publicitárias em que acusava a prima de ser contra a Bíblia e a favor do incesto.

João Campos passou a ser acusado por opositores de sexismo. Perdeu 15 ações judiciais por divulgações de fake news. E, nesta quinta-feira, usou boa parte de seu horário eleitoral para defender a inclusão social das mulheres na política. Sua candidata a vice, a ex-vereadora e advogada Isabella de Roldão (PDT), foi a estrela principal da noite, em que defendia a parceria dos dois. Ainda colheu depoimentos de deputadas federais filiadas a alguns dos 12 partidos que são de sua coligação. Ao ser questionado pelo EL PAÍS sobre os ataques à adversária, disse que não é machista nem faz críticas pessoais. “Desafio as pessoas a encontrarem qualquer agressão minha de ordem machista ou preconceituosa contra qualquer pessoa.”

O candidato à prefeitura do Recife João Campos (PSB) tira foto com apoiadoras.
O candidato à prefeitura do Recife João Campos (PSB) tira foto com apoiadoras.Alexandre Gondim

Para o cientista político Antônio Lavareda, presidente do Conselho Científico do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), os ataques são típicos de disputas que chegam ao segundo turno. “É uma eleição em que se busca alavancar a rejeição do adversário”, afirma.

Na propaganda de João Campos também foi possível notar uma mudança em sua postura. Ele estudou os gestuais de seu pai e passou a reproduzi-los. Um deles, foi o de levantar o braço direito com o punho cerrado como quem comemora um gol olhando para a arquibancada com um leve sorriso na face. O outro, é dar um abraço acolhedor, com uma mão nas costas e outra aconchegando o rosto da pessoa no seu peito. A cena é reproduzida à exaustão, mesmo em tempos em que a pandemia de coronavírus exige o distanciamento social. Essa proximidade com o eleitor e o descumprimento das regras sanitárias também acabou aparecendo na campanha de Marília, que tenta passar a imagem de que gosta de ter esse contato com a população.

Reflexo paterno e cabos eleitorais pagos

A reprodução da figura de Eduardo em João tem dado certo, em alguns momentos. Para os partidos políticos, significou um amplo leque de aliança, com 12 legendas apoiando-o no segundo turno, e ao menos 15, no segundo ―Marília tem quatro siglas de apoio. Para a população, foi como ver um simulacro de um político que foi bem avaliado no passado. “Vou votar no João por causa do pai dele. Nem sei o que ele próprio já fez. Mas vou dar esse voto de confiança”, disse a catadora de materiais recicláveis Leidiane Silva, de 25 anos, enquanto segurava sua filha Alana, de dois meses de idade, no colo. Moradora da favela do Pina, onde há mais de 60 casas em palafitas sem o fornecimento de água ou energia, ela diz que só espera que água potável chegue até seu barraco.

O clima acirrado da campanha repercute nas ruas. Em dois dias, a reportagem se deparou com provocações entre cabos eleitorais dos dois lados em Boa Viagem e no centro da cidade. Em outros pontos, como na praça do Derby, o clima era mais amistoso. Talvez porque nem todos os cabos eleitorais que portavam camisetas da cor de seus candidatos e empunhavam suas bandeiras no semáforo fossem, de fato, militantes. Estavam ali pelo dinheiro.

“Não sei nem se vou votar na Marília. Vim aqui para fazer um corre nesta última semana”, diz o estudante Rudah Nascimento, de 20 anos. Ele é um dos contratados pela equipe de Marília para um trabalho de oito horas balançando bandeiras. Recebe 80 reais por dia. Próximo ao grupo que ele compõe, estão os funcionários da campanha de João Campos, que recebem a metade do valor pelo dia de trabalho. Nos barcos ancorados no entorno da favela do Pina também havia dezenas de bandeiras amarelas, de João, e vermelhas, de Marília. A campanha dele, conforme os pescadores locais, paga 70 reais ao dia para deixar suas bandeiras tremulando nas embarcações. Enquanto a campanha dela paga 50 reais.

Na mesma praça do Derby em que a reportagem encontrou Nascimento estava o estudante Caio Oliveira, de 18 anos. Ele representa o perfil de eleitor mais disputado pelos concorrentes: o que votou em um candidato derrotado e, agora, está em dúvida. No primeiro turno, votou em Mendonça Filho. “Se pudesse, não votaria. Mas terei de fazer uma escolha até domingo”, afirma. Outro eleitor que é disputado intensamente é o que se absteve de votar. Neste ano, 230.157 pessoas, ou 19,89% do total do eleitorado, não foram às urnas. É quase a mesma quantidade de votos que João Campos teve na primeira etapa: 233.028. E um pouco mais do que a votação de Marília, 223.248. Em 2016, a abstenção recifense foi de 126.532.

Com as pesquisas dando um empate técnico, os dois cientistas políticos ouvidos pela reportagem se dividiram sobre o vitorioso no próximo domingo. Antônio Lavareda acredita que o eleitor irá às urnas no domingo sem saber quem é o favorito para se eleger. Enquanto que Priscila Lapa aposta na vitória da petista. “No primeiro turno, menos de um terço do eleitorado votou no João, que é a continuidade da atual prefeitura. A maioria votou pela mudança. Por isso, acredito que Marília deve vencer, ainda que com margem apertada.” Se João Campos vencer, ele terá de antemão maioria na Câmara: 24 dos 39 vereadores eleitos eram de sua coligação. Já Marília, encontrará maior dificuldade com o Legislativo. Sua coligação conseguiu eleger apenas cinco vereadores.

Os estudantes Rudah Nascimento e Caio Oliveira, na praça do Derby, no Recife.
Os estudantes Rudah Nascimento e Caio Oliveira, na praça do Derby, no Recife.Alexandre Gondim


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