“O povo fala: ‘a vida de antigamente era ruim’. Não, era boa. Quem fala, não deve lembrar”

Aos 77 anos, Dona César é uma das personagens retratadas na exposição ‘Vidas Negras’, do Museu da Pessoa, que reúne histórias reais para manter viva a memória da população negra brasileira. Mostra virtual vai até janeiro de 2021. “A única coisa que eu não gosto de antigamente é fogão de lenha”

Dona César Santana, cozinheira natural de Minas, reflete sobre a infância em depoimento ao Museu da Pessoa.
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César Gonçalves Santana
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César Gonçalves Santana, natural de Paracatu, em Minas Gerais, é uma mulher batalhadora que trabalha desde a infância e, ainda hoje aos 77 anos, faz bolos e pães de queijo para complementar a renda da família. Aprendeu a ler, mas não na escola, pois quando ia já estava cansada das tarefas que tinha que realizar antes de chegar a hora de estudar. A cozinheira se alfabetizou em Brasília, para conseguir identificar as linhas de ônibus e poder circular pela capital do Brasil. Dona César, como é chamada, se casou, teve um casal de filhos e netos. Apesar de ter tido uma infância pobre, marcada pela fome, e uma vida muito simples, se diz feliz, muito feliz.

Abaixo, um trecho do depoimento que deu ao Museu da Pessoa ―primeiro museu virtual e colaborativo de histórias de vida do mundo― que integra a exposição Vidas Negras. A exposição, em cartaz até janeiro de 2021, traz à luz cenas do cotidiano de famílias negras do Brasil nos séculos XX e XXI. “As vidas negras são patrimônio fundante do Brasil e trazê-las à luz neste momento do país é atuar para que este valor - histórico e humano - seja reconhecido”, afirma Karen Worcman, fundadora e curadora do Museu da Pessoa.

Era aquela pobreza, mas era aquela pobreza, aquela paz. O dia que tinha pra comer, comia, o dia que não tinha não comia. E o que tinha, a gente ficava satisfeito. A gente brincava de cozinhar, cozinhava planta, esses trens, bordava nas folhas de bananeira, escovava com folha de laranja, folha de andu, brincava de comadre, boneca de sabugo, boi de mandinha. Era muito bom. Escorrega na gamela, mamãe na praia, pique esconde. Hoje o povo não brinca, né? Mas é muito bom.

A lua clara porque não tinha luz, a gente brincava ali nas portas, cada dia na porta de um. Era bom, muito bom. Nove horas a gente já estava tudo em casa ali, cada um ia pra sua casa. Era bom, muito bom. Povo fala: “Ah, a vida de antigamente era ruim”. Não, era boa, muito boa. Quem fala, não deve lembrar aí, eu alembro, eu gosto de alembrar. Aqueles banhos na praia, tomava aqueles banhos na praia que a gente vinha cinzenta de tanto banho (risos), lavando roupa e tomando banho. Lavando roupa, tomando banho e a gente pulando, dava salto mortal naqueles poços fundo, não tinha medo.

Tinha aquelas mulheres tirando o ouro, fazia aqueles puxados fundos. E elas não gostavam que a gente tomava banho, a hora que ela saía a gente caía lá no puxado. Era muito bom. Agora que não coisa, mas de primeiro era bom. Essa pobreza, sem roupa, sem sapato, sem nada de comer, tinha dia que não tinha. Tinha dia que não acendia nem fogo. Quando achava uma coisa pra comer, um arroz que a pessoa chegava da roça e trazia, a gente pegava fogo num vizinho pra acender o fogo da casa da gente. Mas era bom, a gente não sentia fome. Agora hoje o povo fala que rouba porque está passando fome. E a gente não comia, não sentia fome e não precisava de roubar. Meu pai falava: “Ói gente”, tudo o que a gente chegava em casa com ele, ele queria saber: “Onde vocês arranjaram isso? Vai pôr lá onde vocês acharam.”

Na imagem, Dona César no dia em que se casou com o marido Paulo, em 1976, em Brasília
Na imagem, Dona César no dia em que se casou com o marido Paulo, em 1976, em BrasíliaMuseu da Pessoa

Aí de tarde tinha o que comer tinha, não tinha ia deitar. Meu pai fazia uma fogueira, que coberta não tinha, né? Ele fazia um fogo no meio da sala e ficava aquele fogo ali a noite inteira aquecendo. E ele ali. E ele falava: “Meus filhos come pedra ou pau, mas é junto comigo”. Separamos quando ele estava ruim, meu irmão levou ele pra roça. Mas aí eu fiquei, tinha minha irmã mais velha, aí ela arranjou um emprego pra mim, eu fiquei no meu emprego, ela no dela, de noite eu ia dormir com ela. Mas era bom, foi bom porque não precisou nós roubar, não é? Por isso eu sei viver, com pouco e com muito.

E naquele tempo era mais difícil, né? E hoje não, eu estou trabalhando ainda, estou com minha pensão, é pouca, é um salário, aposentadoria que eu aposentei agora, mas continuo fazendo bolo porque não dá. A única coisa que eu não gosto de antigamente é fogão de lenha. Eu mexi muito com lenha, carregando caminhão de lenha, sabe? Para guardar para dentro, rachando lenha. Aquelas lenhas molhadas, a gente pelejando para o fogo acender. Aí eu não gosto, não gosto de fogão a lenha não. Aqueles panos de prato tudo preto, a gente pelejando para limpar, aí eu não gosto fogão de lenha, não. De jeito nenhum.”

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