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Bolsonaro ignora impacto do caso Carrefour e segue negando racismo no Brasil

Governo mantém postura adotada desde o assassinato de João Alberto Silveira Freitas em supermercado. Entidades, políticos e juristas se posicionam contra negacionismo do racismo estrutural

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no palácio do Planalto
O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no palácio do PlanaltoJo�dson Alves (EFE)

Em discurso neste sábado durante a conferência do G20 – o grupo que reúne os países com as maiores economias do mundo –, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) voltou a negar o racismo no Brasil, dizendo que existem “tentativas de importar para o nosso território tensões alheias à nossa história”. De acordo com Bolsonaro, “luta por igualdade” ou “justiça social” são apenas tentativas de destruir a simpatia conquistada pela miscigenação de brancos, negros e índios no país, substituindo-a pelo conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças. “Tudo em busca de poder”, de acordo com a lógica presidencial. A participação foi feita por videoconferência, devido à pandemia gerada pelo novo coronavírus.

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Bolsonaro abriu sua fala – supostamente dirigida a outros líderes mundiais – tratando do tema, que ganhou força após a morte brutal do homem negro João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, após ser espancado por seguranças em uma unidade da rede de supermercados Carrefour em Porto Alegre, na noite de quinta-feira, na véspera do dia da Consciência Negra. A sequência de agressões foi filmada e causou comoção nas redes sociais, dando início a uma série de protestos Brasil afora, incluindo a própria capital gaúcha, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte. Na manhã deste sábado, um coletivo de artistas paulistanos deixou estampado na avenida Paulista, em letras garrafais, um resumo do sentimento, com a frase #Vidas Pretas Importam.

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Artistas pintam a Paulista após morte de negro em supermercado, enquanto Governo nega racismo
Demonstrators start a fire during a protest at the entrance of a Carrefour supermaket where Joao Alberto Silveira Freitas was beaten to death, in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, on November 20, 2020. - The death of a black man on Thursday night after being beaten by white security agents in a supermarket belonging to the Carrefour group in Porto Alegre unleashed a wave of indignation in Brazil, which this Friday commemorates Black Consciousness Day. (Photo by SILVIO AVILA / AFP)
Espancamento até a morte de cliente negro em um mercado põe sob lupa o racismo no Brasil
Una manifestante protesta ante la policía durante las manifestaciones contra la violencia policial en California.
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Bolsonaro, no entanto, ignorou o nome de João Alberto ou os protestos em seu discurso, aparentemente mais dirigido ao público interno do que ao externo ―algo que tem se tornado uma prática comum em seu governo. Vários trechos de sua fala foram idênticos ao conteúdo que ele havia publicado em redes sociais na sexta-feira, após o assassinato― especialmente as passagens onde ele diz que “somos um povo miscigenado. Brancos, negros e índios edificaram o corpo e o espírito de um povo rico e maravilhoso. Em uma única família brasileira podemos contemplar uma diversidade maior do que países inteiros”. Na sequência, Bolsonaro acusa a existência de “interesses” para que “se criem tensões entre nós” –ignorando o racismo estrutural presidente na sociedade brasileira. De acordo com a visão presidencial, “um povo unido é um povo soberano. Dividido é vulnerável. E um povo vulnerável pode ser mais facilmente controlado e subjugado”.

O discurso do presidente também encontra eco na fala de seu vice, o general Hamilton Mourão, que classificou como “lamentável” a morte de João Alberto, mas negou que o Brasil seja um país racista, ainda que a vítima seja negra e os autores do crime sejam brancos. “Eu digo para você com toda tranquilidade: não tem racismo. Eu digo isso para vocês porque eu morei nos Estados Unidos. Racismo tem lá. (...) Aqui o que existe é desigualdade”, afirmou.

Reações

A fala negacionista de Bolsonaro e Mourão se choca com a posição de uma série de entidades e personalidades nacionais. A Ordem dos Advogados do Brasil, (OAB), por exemplo divulgou uma nota sobre o assassinato de João Alberto dizendo que “essas cenas revoltantes, que lembram o que ocorreu com George Floyd nos Estados Unidos e que acabou desencadeando uma onda de protestos em todos os cantos do mundo, marcaram de forma ainda mais relevante esse dia 20 de novembro, Dia Consciência Negra, em que a sociedade brasileira é convidada a refletir e trabalhar políticas e ações de igualdade, inclusão, respeito, união, justiça e antirracismo”. Ainda de acordo com a entidade, “a conscientização para combater o racismo estrutural é tarefa complexa e fundamental e terá sempre a OAB como uma das principais entidades a cobrar ações efetivas, que possam descortinar um futuro melhor para toda a sociedade brasileira no combate dessa verdadeira chaga”.

No meio jurídico, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) também se posicionaram sobre a ligação entre o assassinato e o racismo. Gilmar Mendes escreveu que “O Dia da Consciência Negra amanheceu com a escandalosa notícia do assassinato bárbaro de um homem negro espancado em um supermercado. O episódio só demonstra que a luta contra o racismo e contra a barbárie está longe de acabar. Racismo é crime!”. Já Alexandre de Moraes classificou o racismo estrutural como “uma das piores chagas da sociedade, enquanto Luiz Fux, presidente do Tribunal, pediu um minuto de silêncio em evento que participava.

Entre os políticos, a reação também foi pesada. O presidente do Senado, David Alcolumbre, (DEM-AP). Afirmou que o assassinato “escancara a necessidade de lutar contra o terrível racismo estrutural que corrói nossa sociedade”. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), também seguiu a mesma linha ao afirmar que “a cultura do ódio e do racismo deve ser combatida na origem, e todo peso da lei deve ser usado para punir quem promove o ódio e o racismo”.

Outros parlamentares também se mobilizaram para refutar o racismo. Paulo Paim (PT-RS), presidente da comissão de direitos humanos do Senado, escreveu que “Lamentavelmente a história se repete. Mais uma pessoa negra é espancada e assassinada covardemente. #Carrefour #PortoAlegre #RS Ódio, violência, racismo, discriminação, intolerância... Até quando? O sangue das senzalas ainda continua a jorrar no Brasil”. Outros senadores tiveram posições similares. Fabiano Contarato (Rede-ES) disse que “não é por acaso que, no Dia da Consciência Negra, o Brasil se choque com o assassinato brutal de uma pessoa negra, realidade cruel que reflete uma sociedade racista e um Estado que, omisso, estimula a barbárie. Nossa solidariedade à família da vítima. E condenação efetiva para os criminosos”, enquanto Simone Tebet (MDB-MS) fez questão de afirmar em suas redes sociais que “o João Alberto é mais uma vítima do RACISMO”, em caixa alta. Talíria Petrone (PSOL-RJ), presidente da Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular, também afirmou que o episódio “é uma expressão aguda do racismo que estrutura todas as relações sociais no Brasil”.

Covid-19 e OMC

Durante o resto de sua fala, Bolsonaro falou sobre a pandemia do novo coronavírus. Ele disse que “juntos, estamos superando uma das mais graves crises sanitárias da história recente. Estamos vencendo as incertezas, as dificuldades logísticas e, inclusive, a desinformação”. Ontem, sexta-feira, o Brasil superou a marca dos 6 milhões de infectados por covid-19. De acordo com o boletim oficial do Ministério da Saúde, o número oficial de mortes é de 168.613 desde o início da pandemia. No entanto, de acordo com o mandatário, “à medida que a pandemia é superada no Brasil, a vida das pessoas retorna à normalidade e as perspectivas para a retomada econômica se tornam mais positivas e concretas”, afirmou.

O presidente brasileiro também afirmou que “o Brasil se soma aos esforços internacionais para a busca de vacinas eficazes e seguras contra a covid-19, bem como adota o tratamento precoce no combate à doença” – embora, nesta semana, o Ministério da Saúde tenha excluído a vacina chinesa Coronavac ―fabricada pelo laboratório Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, do Governo do Estado de São Paulo― de um possível acordo de compra dos medicamentos. Na semana passada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) iniciou uma guerra de versões com o Butantan e paralisou, por dois dias os testes por conta da morte de um voluntário. A morte não teve relação com a vacina, como se soube na sequência ―foi um suicídio. Bolsonaro atualmente é adversário político do governador paulista, João Doria (PSDB).

O presidente brasileiro voltou a defender que a vacina contra a covid-19 deverá ser optativa ―um ponto que ele vem ressaltando seguidamente em discursos, como contraposição à posição adotada por Doria, que defende a obrigatoriedade do medicamento. “É preciso ressaltar que também defendemos a liberdade de cada indivíduo para decidir se deve ou não tomar a vacina. A pandemia não pode servir de justificativa para ataques às liberdades individuais”, disse Bolsonaro.

No encerramento de seu discurso, Bolsonaro também fez um apelo pela reforma da Organização Mundial do Comércio, a OMC, que passaria a ser um elemento-chave na recuperação da economia mundial. “Queremos que a ambição de reduzir os subsídios para bens agrícolas conte com a mesma vontade com que alguns países buscam promover o comércio de bens industriais”, disse ele, pedindo a criação de condições justas e equilibradas para o comércio internacional, não só de bens, mas também de serviços. “Proponho que nossos ministros debatam e compartilhem melhores práticas sobre como lidar com esse tema, evitando-se cair na armadilha de subsídios e políticas que distorçam o comércio internacional”, completou.


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