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Eleições Brasil 2020
Coluna
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Terremoto nas eleições brasileiras. Candidatos de Bolsonaro e Lula afundam e surge uma nova esquerda jovem e moderna

Surpresas eleitorais indicam que a política brasileira continua viva, que sua democracia está resistindo aos ataques e que suas gerações mais jovens buscam por novos políticos

Guilherme Boulos, candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo, em um ato de campanha nesta quarta-feira no centro da capital paulista.
Guilherme Boulos, candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo, em um ato de campanha nesta quarta-feira no centro da capital paulista.NELSON ALMEIDA (AFP)
Juan Arias

O resultado do primeiro turno das eleições municipais no Brasil provocou um terremoto que mudou todas as cartas políticas. Foi uma das eleições mais atípicas desde os tempos da ditadura porque houve uma confluência de astros sobre elas que lhes deu valor agregado e das quais tanto os candidatos do presidente Bolsonaro como os do mítico líder Lula saíram surrados e derrotados.

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Era a primeira vez que se realizava uma eleição em meio a uma pandemia como esta e apesar do desprezo com que o presidente Bolsonaro a tratou desde o primeiro momento, chamando de maricas e covardes aqueles que a temiam, havia o perigo de que as pessoas ficassem em casa, deixando de votar.

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People experience long waiting times as they queue at a polling station during Brazil's municipal elections in Rio de Janeiro, on November 15, 2020. - Brazilians voted Sunday in municipal elections that will test the strength of the country's rightward shift under President Jair Bolsonaro, with the coronavirus pandemic looming large -- and likely denting turnout. (Photo by Carl DE SOUZA / AFP)
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É verdade que houve uma abstenção maior do que na eleição municipal de 2016, cerca de 30% maior, mas foi emocionante ver como milhões de pessoas foram às ruas para votar portando máscaras e álcool em gel. Quem disse que o brasileiro não se interessa por política?

Além do fato da pandemia, estas eleições foram importantes por terem sido as primeiras depois das presidenciais de 2018, que deram ao capitão de extrema direita Bolsonaro 75 milhões de votos, na esperança de que iria mudar a velha política e acabar com a corrupção partidária. Estas eleições foram um teste de como sua força eleitoral se mantinha.

Ao mesmo tempo, foram as primeiras realizadas com Lula fora da prisão e com total liberdade para fazer propaganda dos candidatos de seu partido, o PT, que sempre teve a hegemonia da esquerda no país, sendo o partido com mais deputados no Congresso e que sempre teve força de atração na América Latina. Tratava-se de ver se o PT, após a prisão de Lula, começava a se recuperar de seus dias sombrios de corrupção de muitos de seus quadros, que sangrou a credibilidade do partido.

A tudo isto teria que se somar o teste de um pequeno partido de esquerda, o PSOL, que nasceu da expulsão do PT de um punhado de militantes que já começavam a se desiludir com o aburguesamento do partido. Sempre foi um partido minoritário, mas que se destacou pela defesa dos excluídos e das classes mais esquecidas, como os trabalhadores sem-teto, os movimentos em favor de quem sofre perseguição por sua condição de gênero e por todas as questões do feminismo moderno. O PSOL é um partido que conta com uma mártir, a jovem negra e lésbica saída da favela, Marielle Franco, que conseguiu ser vereadora do Rio, de onde travou uma batalha contra as milícias que começavam a se enxertar nos gânglios do Estado. Foi assassinada, tornou-se um símbolo que atravessou fronteiras e ainda hoje não conseguiram ―ou não quiseram―descobrir os mandantes do crime.

Marielle era uma das esperanças do PSOL e um fermento do futuro. Como já escrevi nesta coluna, a jovem negra está se revelando mais perigosa morta do que viva. Do túmulo, continua tirando o sono de muitos políticos e da própria família de Bolsonaro, amiga dos milicianos quem a assassinaram.

Nestas eleições, pela primeira vez mulheres trans foram eleitas para várias Câmaras municipais, e até mesmo ficaram entre os candidatos mais votados, como Erika Hilton, a vereadora mulher com mais votos na grande São Paulo, ou Duda Salabert em Belo Horizonte, capital do importante Estado de Minas Gerais.

Em São Paulo, Erika fez um discurso forte e comovente, lembrando que no Brasil, país em que mais pessoas trans são mortas por homofobia e uma mulher é assassinada a cada duas horas, as trans estão entrando na política com força para defender sua causa. Disse com firmeza: “Isto começa aqui, mas não acabará”.

Chamei de terremoto estas atípicas eleições municipais de São Paulo porque revelaram, entre muitas outras coisas, que todos os candidatos apoiados por Bolsonaro ou Lula sofreram um desastre, o que já pode ser um prenúncio das eleições presidenciais de 2022. Mito do extremismo golpista da extrema direita, Bolsonaro começa a desmoronar como um castelo de cartas. Os candidatos mais apoiados por ele acabaram derrotados. Se alguém tem dúvidas, basta lembrar o que disse, indignado, sobre o resultado das eleições, o famoso guru e ideólogo radicado nos Estados Unidos, Olavo de Carvalho, que desde o início tem sido o mestre do bolsonarismo, conselheiro do presidente e de seus filhos. Ao saber do resultado, ele escreveu, de acordo com o site O Antagonista: “O péssimo desempenho dos bolsonaristas na eleição não tem mistério nenhum. Ludibriado pela conversa mole de generais-melancias, o presidente confiou demais no sucesso inevitável da sua liderança pessoal, sem perceber que ela não passava, precisamente, disso: uma liderança pessoal sem respaldo militante e incapaz, por isso, de transmitir seu prestígio a qualquer aliado”.

E se as eleições revelaram que o castelo Bolsonarista começa a rachar e já dá sinais de cansaço e esgotamento, também revelaram a derrota de Lula e do PT, que não foram capazes de conquistar nenhuma cidade importante, nem mesmo na região do Nordeste pobre, de onde ele vem e que sempre lhe garantiu milhões de votos.

A quase saída da cena do bolsonarismo e do lulismo da política brasileira e o voto maciço que os brasileiros deram à “velha política”, aos fortes partidos de centro e de centro-direita, começam a revelar que não acreditam mais no mito de que Bolsonaro chegou para acabar com a política tradicional, ao buscar apoio novamente nos partidos clássicos, da vida toda, que estão ressurgindo com força. A tal ponto que já se fala em uma união deles para conseguir derrotar Bolsonaro nas eleições presidenciais.

A esquerda do PT não só perdeu nestas eleições, mas saiu acabada. Em São Paulo, a cidade mais rica e a maior da América Latina, onde sempre teve um de seus feudos mais fortes, seu candidato ficou bem atrás na fila, enquanto emergia em segundo lugar, competindo com o atual prefeito da cidade, o jovem presidente do PSOL, Guilherme Boulos, 38, que conseguiu, como um pequeno David contra o gigante Golias, chegar aonde nem sonhava, com a possibilidade de vencer no segundo turno, o que significaria uma revolução para a política brasileira. Lula não quis apoiar a candidatura de Boulos e seu candidato acabou humilhado. Só agora terão que apoiar o jovem líder do PSOL que se inspirou nos novos partidos de esquerda que surgiram nos últimos anos na Europa, incluindo o Podemos, da Espanha.

Os resultados destas eleições com suas surpresas inesperadas indicam que a política brasileira continua viva, que sua democracia está resistindo aos ataques de uma extrema direita selvagem, autoritária e golpista, e que busca nas gerações jovens, que são as que votaram no domingo, novos políticos. Políticos abertos aos desafios que a humanidade apresenta e com vontade de revitalizar uma política que saia dos palácios para tocar com as mãos os graves problemas da fome, do racismo e do massacre de negros e mulheres, para os quais a velha política aburguesada fechava os olhos, pensando apenas em seus benefícios e os de suas famílias.

É apenas o início, mas não é pouco.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.

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