Terras da reforma agrária vão parar na mão de políticos

Declarações de bens de candidatos mostram que eles acumulam terras em assentamentos, a maior parte deles na Amazônia, especialmente em locais com altos índices de desmatamento

Um caminhão transporta madeira obtida ilegalmente na floresta amazônica, registrado em agosto deste ano.
Um caminhão transporta madeira obtida ilegalmente na floresta amazônica, registrado em agosto deste ano.Fernando Bizerra (EFE)
Alceu Luís Castilho Leonardo Fuhrmann Mariana Franco Ramos

Terras em assentamentos de reforma agrária aparecem nas declarações de bens de centenas de candidatos a prefeito nas eleições de 2020. Seriam eles políticos camponeses, que utilizam as propriedades para subsistência? Não exatamente. Os assentamentos são áreas públicas, algumas delas frutos de desapropriações, entregues em projetos de democratização do acesso à terra pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ou por seus similares, nos governos federal e estaduais. Um levantamento inédito feito pelo portal De Olho nos Ruralistas na base de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), divulgado com exclusividade por EL PAÍS, mostra que alguns desses candidatos declaram oficialmente que acumulam patrimônio milionário, diversos lotes em assentamentos —o que contraria o princípio distributivo da reforma agrária— e fazendas tradicionais, adquiridas regularmente no mercado.

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Parte expressiva dessas terras fica nos nove Estados que compõem a Amazônia Legal: Mato Grosso, os sete estados da região Norte e a maior parte dos municípios do Maranhão. Foi essa região a escolhida, por governos de diferentes orientações políticas, para que pequenos produtores tivessem acesso à terra. E é nela que os políticos ostentam as terras como propriedades quaisquer. A pesquisa mostra que esses candidatos nasceram em vários pontos do país e têm ali seu Eldorado político— em meio a terras concebidas para terem função pública, e não para servirem à especulação imobiliária.

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Nada menos que 895 imóveis em assentamentos foram declarados por 35 candidatos a prefeito, 38 candidatos a vice e 822 candidatos a vereador. Entre os 35 que tentam ser prefeitos, ao longo de todo o Brasil, 15 (43%) declararam possuir terras da reforma agrária na Amazônia Legal. O percentual nessa região entre os que buscam as vice-prefeituras (39%) e as Câmaras Municipais (42%) são similares. A proporção é três vezes maior que aquela entre o total de municípios da Amazônia Legal (772) e o total de municípios do país (5.570). A história de cada um desses candidatos confirma a tendência de concentração de território e renda entre políticos —com as terras da reforma agrária transformadas em instrumentos de enriquecimento.

A reportagem procurou, desde o início da semana, todos os políticos citados na reportagem, mas até a publicação desta edição obteve somente uma resposta, citada nesta matéria.

Propriedades

Candidato à reeleição em Novo Santo Antônio (MT), o goiano Adão Soares Nogueira possui quase 5 milhões de reais. Mesmo assim ele tem terras no Projeto de Assentamento (PA) Macife I. Não um lote, mas quatro. Somente essas propriedades ultrapassam os 3 milhões de reais, conforme ele informou à Justiça Eleitoral. Conhecido como Adão Belchior, esse político do DEM nascido em Paranã, hoje um município do estado do Tocantins, viu o patrimônio saltar de 3,5 milhões de reais, quando assumiu a prefeitura, há quatro anos, para 4,9 milhões de reais.

O município na região do Araguaia foi construído em território Xavante, nas margens do Rio das Mortes. Possui 2.000 habitantes e um Produto Interno Bruto (PIB) de 15,2 milhões de reais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas três vezes superior ao patrimônio do prefeito. O PIB per capita é de 6.840 reais. As terras entregues pelo poder público para a produção de camponeses viraram fazendas nas mãos de Belchior. Mais de 3 milhões de reais de sua riqueza — em terras que somam 582 hectares — são frutos de assentamentos. Não do que ele produz ali, apenas do preço das terras. Os assentamentos federais são de responsabilidade do Incra, criado na ditadura militar, em 1970. Alguns estados têm órgãos com a mesma função.

O acúmulo de imóveis da reforma agrária nas mãos de um único dono é visto como uma distorção do sistema. “Na melhor das hipóteses são assentamentos antigos, já bastante descaracterizados”, diz Pedro Martins, assessor jurídico da ONG Terra de Direitos na Amazônia. No caso de Adão Belchior, que acumula também terras que não eram da reforma agrária, a produção se destina à pecuária: o político goiano tem 499 cabeças de bois da raça nelore, avaliadas por ele em 1 milhão de reais. Isto localizado em um dos 267 municípios que mais desmatam no Brasil, aqueles do Arco do Desmatamento.

Outra assentada com patrimônio milionário no Arco do Desmatamento é a paranaense Carmelinda Leal Martins Coelho (DEM), prefeita de Carlinda, no norte do Mato Grosso. Entre os 2,88 milhões de reais declarados ao TSE estão 226.000 de quatro lotes no assentamento Carlinda. O próprio município nasceu de um assentamento, em 1981. Não é algo incomum na Amazônia: em Manicoré, município do sul do Amazonas que também está entre os que mais desmatam no Brasil, um projeto do Incra no quilômetro 180 da Transamazônica é hoje um vilarejo, o distrito de Santo Antônio do Matupi, um polo de expansão de madeireiros na região.

Imagem de arquivo de um vilarejo no Amazonas que deveria ser um assentamento.
Imagem de arquivo de um vilarejo no Amazonas que deveria ser um assentamento.Alceu Castilho

A situação em Carlinda já causava preocupação no professor Damião de Souza Ramos em 2009. Criado no assentamento, ele apontava no site Só Notícias a transferência das terras para latifundiários: “Existem linhas inteiras divididas entre dois proprietários, outras com blocos de 6, 5 e 4 sítios por proprietários”. Em 2006, na primeira eleição que disputou, a prefeita de Carlinda dispunha de 1,94 milhão de reais. Nascida em Assis Chateaubriand, no Paraná, mas radicada no Mato Grosso, a milhares de quilômetros, a candidata à reeleição pelo DEM é dona de um rebanho de 566 cabeças de boi, declaradas por 1,48 milhão de reais.

Migração para o mercado

Um dos líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Gilmar Mauro explica que diferentes tipos de assentamento formaram diferentes perfis de beneficiários da reforma agrária. “Existem projetos desde o governo João Goulart, no início dos anos 1960”, observa. Ele foi o primeiro presidente a criar assentamentos como conhecemos, embora a entrega de grandes áreas para empresas de colonização já fossem uma prática comum, em especial no Mato Grosso. Muitos projetos foram criados, em especial na Amazônia, durante a ditadura que derrubou Goulart, sem levar em conta a necessidade dos assentados. Alguns valorizavam a capacidade econômica de quem recebia os lotes, beneficiando pessoas do sul do Brasil — e não camponeses pobres da Amazônia.

Gilmar estima que existam cerca de 1 milhão de assentados no Brasil, dos quais 400 mil fazem parte da base do MST, contrário à política de distribuição de títulos de propriedade. “Defendemos que os assentados devem receber termos de uso, com direito de hereditariedade, não que possam ser donos e vender as terras”, afirma. “Para nós, elas são um bem público comum”. O movimento teme que essas propriedades voltem ao mercado e sirvam à especulação imobiliária. “Com a desindustrialização que o Brasil vive nos últimos tempos, o capital se concentra no rentismo, no comércio e nas grandes propriedades rurais destinadas à produção de commodities”, diz.

Candidato a prefeito de Alto Paraíso, em Rondônia, João Pavan (DEM) declarou dois lotes no Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) Marechal Dutra, em Ariquemes. Com outros imóveis urbanos e rurais, Pavan —mais um paranaense, de Astorga— declarou 525.000 reais em bens. O projeto de colonização entregava lotes de 100 hectares em meados dos anos 1970. O objetivo era incentivar a produção de café. Em outro PAD incentivava-se o cultivo de cacau. O senador Confúcio Moura (MDB-RO), duas vezes governador de Rondônia, declarou em 2018 ter quatro lotes no PAD. Nascido em Goiás, ele declarou quase 4,3 milhões de reais em bens. As quatro terras de 629 hectares no PAD foram registradas por 60.000 reais. Os dois lotes de Pavan, por 13.000. Alto Paraíso também está no Arco do Desmatamento.

Outros dois proprietários de terras em áreas de reforma agrária disputam a prefeitura de Bom Jesus do Araguaia, no nordeste do Mato Grosso. O prefeito Ronaldo Rosa de Oliveira, o mato-grossense Rone do Murerê (DEM), e o vice-prefeito, Marcilei Alves de Oliveira, o goiano Mansão (PSB), foram eleitos em 2019, numa eleição suplementar feita após a cassação de Joel Ferreira (PSDB) e Edmárcio Moreira da Silva (PRP), acusados de comprar votos. Rone e Mansão decidiram se enfrentar. O patrimônio de 878.000 reais de Rone inclui um terreno no PA Macife, novamente ele, avaliado em 400.000 reais, e duas terras em Bom Jesus do Araguaia. Em 2019, ele foi acusado por vereadores de usar servidores da prefeitura em uma reforma na sua casa. Seu oponente Mansão declarou 1.186.102,67 de reais em bens e, assim como Rone, tem uma propriedade no PA Macife, de 700.000. Mais 229 cabeças de gado, avaliadas em 239.793 reais.

Mais dublês de pecuaristas e assentados tentam ser prefeitos no Mato Grosso. Em Novo São Joaquim, outro município formado em território Xavante, o agricultor Antônio Augusto Rodrigues (PSB) informa que o terreno de 34,81 hectares no PA Santo Idelfonso vale 600.000 reais. O projeto de assentamento foi criado em 1977, durante o governo Ernesto Geisel. Conhecido como Alemão Roque e nascido no município, Rodrigues declarou ao TSE um total de 1,27 milhão de reais, o que inclui a fazenda e 296 cabeças de gado. A média de bois por brasileiro é de pouco mais de uma cabeça por pessoa. Em entrevista por telefone, Alemão Roque afirmou que é assentado pelo Incra e que continua morando no Pará, mais precisamente no sítio Santa Augusta. “Estou no assentamento desde o começo”, afirmou. “Em 1996 começou a luta pela terra e em 1998 eu fui para lá, quando fiz 18 anos”. O candidato argumenta que sua parcela de terra não tem mais ligação com o Governo. “Fui um dos primeiros titulados. Venceu o prazo das regras vigentes, pedi a baixa da cláusula resolutiva e hoje meu lote é quitado”. Quanto às cabeças de gado, ele justifica que adquiriu ao longo dos últimos 21 anos. “A gente trabalha com arrendamento. Eu arrendo outras terras."

Imagem de arquivo de uma oficina em Santo Antônio do Matupi, em Manicoré (AM), numa área que deveria ser assentamento.
Imagem de arquivo de uma oficina em Santo Antônio do Matupi, em Manicoré (AM), numa área que deveria ser assentamento.Alceu Castilho

Estímulo à aquisição

A advogada Maíra de Souza Moreira, da ONG Terra de Direitos, diz que as alterações de legislação a partir de 2017 — início da gestão de Michel Temer (MDB), após o impeachment de Dilma Rousseff (PT) — abriram margem para uma nova concentração de terras da reforma agrária e a regularização de fazendas localizadas em terras públicas. “Antes, a lei impedia a alienação das terras antes de dez anos de permanência. Agora, pode ser feita logo após a quitação”, diz. Isso facilita a reinserção precoce das terras no mercado e barra as famílias que realmente precisam se consolidar no campo. “A lei também facilita a regularização, de forma individualizada, de propriedades em terras públicas”, afirma.

Aos poucos essa lógica se expande pelas bordas da Amazônia. Em Cruzeiro do Sul, no Acre, na fronteira com o Peru, Adonis Francisco de Almeida, o Sargento Adonis (PSL), informou ao TSE possuir quatro terrenos rurais no Projeto de Assentamento Dirigido Santa Luzia, onde vivem 885 famílias, segundo o Incra. As quatro propriedades somam 334 hectares. Em duas delas ele informou ao TSE ter escritura pública, oriunda de inventário. Nas outras duas ele seria “posseiro de boa fé”, ou seja, diz que se apropriou de forma legítima, para subsistência, de um bem público. O patrimônio total do policial, que inclui 90 cabeças de gado, é de 1.152.000 de reais. Mais um assentado milionário.

Foi no PAD Santa Luzia que o PM fez seu maior evento de campanha, no penúltimo sábado (31). “Vamos libertar Cruzeiro do Sul de cem anos de escravidão política”, discursou. O assentamento foi criado no início dos anos 1980, nos últimos anos da ditadura, quando ainda se falava em “colonização” — termo com viés racista que ainda faz parte do nome do Incra. Com o ciclo da borracha em decadência, o desmatamento foi uma das principais alternativas utilizadas pelos assentados.

No Pará, um dos estados que mais desmatam no Brasil, o município de Eldorado dos Carajás ficou conhecido pelo massacre de dezenove membros do MST, no dia 17 de abril de 1996, durante operação da PM, que saiu em defesa de fazendeiros da região. A data motivou a criação do Dia Mundial da Luta pela Reforma Agrária. É ali que o prefeito Celio Rodrigues da Silva, o Celio Boiadeiro (MDB), tenta a reeleição com um patrimônio de 1,67 milhão de reais. Uma de suas propriedades fica “na área do Incra”, no PA Água Fria. E o que o candidato nascido em Arinos (MG) produz ali? Gado: ele informa ter 200 cabeças de boi, no valor de 400 mil reais — o preço de 2.000 por cabeça é o mais comum entre candidatos pecuaristas de todo o Brasil.

“Estado deveria intervir”

Para o advogado Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), os dados são impressionantes. “Quem trabalha com a questão agrária desconfia que alguns assentamentos não funcionam, não dão certo”, diz o jurista, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). “Há interesses econômicos por trás. Mas, quando a gente vê no concreto, fica pensando como eles declaram”. As informações no TSE são as mesmas que os políticos entregam à Receita Federal, com os valores originais dos bens. Muitos números, atualizados, são até dez vezes maiores.

Marés vê duas hipóteses para que tantos candidatos acumulem terras da reforma agrária. A primeira: eles realmente são assentados. “Outros compraram depois a gleba, porque ninguém recebe dois lotes. Ainda que fosse assentado em um, comprou outro no processo”. Isso indica uma reforma agrária malfeita. “Quando as políticas públicas não são adequadas, a terra volta a se concentrar”. A outra hipótese explica os milionários: eles são pessoas de fora dos assentamentos, que simplesmente compram os lotes. “Demonstra uma situação pior: políticas públicas débeis e erradas”.

Presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) durante o segundo Governo de Fernando Henrique Cardoso, Marés lembra que a concentração de fazendas nas mãos de políticos sempre foi comum no país, pois a terra é uma reserva de capital. “Tem uma grande vantagem ser prefeito: você faz estradinha, arruma a estrada que já existe, faz asfalto... Isso vai valorizando a terra”, diz. “O prefeito também tem o poder de conseguir obras públicas estaduais e federais, através de seus deputados. É um bom negócio. Escandaloso, mas um bom negócio”.

Em São Geraldo do Araguaia, no Pará, o pecuarista maranhense Regivaldo Pereira da Costa (MDB) possui um lote de 173,7 hectares no que ele chama de Fazenda Nova Esperança — na verdade uma terra em assentamento, no PA Gameleira, declarada por 360 .000. Entre suas propostas para a prefeitura estão o projeto “Vicinal Bonita”, para deixar as estradas vicinais trafegáveis e seguras, e o programa “Estrada Legal”, para manutenção de estradas na zona rural.

Segundo Carlos Marés, a reforma agrária mal feita gera uma reconcentração de terra: “O dinheiro público faz um baita investimento para melhorar as condições de vida das pessoas e aí se reconcentra. É um sinal de que a política foi totalmente ineficaz. Não toda a reforma agrária, mas a política que levou a isso. O Estado deveria intervir”.

Esta matéria faz parte de uma série de reportagens produzida pelo site De olho nos ruralistas, um observatório do agronegócio e das políticas ruralistas no Brasil. A série foi produzida com o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF), em parceria com o Pulitzer Center.

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