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Governo Bolsonaro
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

A defesa do SUS e as oportunidades de negócios farejadas pelos amigos de Guedes

Mario Sheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP, comenta as pistas deixadas pelo decreto para estudar parceiras público-privadas nas UBS. Texto não durou 24 horas

Paulo Guedes em Brasília.
Paulo Guedes em Brasília.EVARISTO SA (AFP)
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FILE - In this March 16, 2020 file photo, a patient receives a shot in the first-stage safety study clinical trial of a potential vaccine for COVID-19, the disease caused by the new coronavirus, at the Kaiser Permanente Washington Health Research Institute in Seattle. In a press briefing on Thursday May 14, 2020, the European Medicines Agency predicted that there could be licensed drugs to treat the new coronavirus in the next few months and that a vaccine might even be approved in early 2021, in a “best-case scenario.” (AP Photo/Ted S. Warren, File)
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O decreto assinado por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para estudar parcerias com a iniciativa privada “para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde” não durou nem 24 horas. A proposta de privatizar as UBS, a porta de entrada do SUS, não resistiu à onda de críticas de parlamentares, de especialistas e, especialmente, à força que a defesa do maior sistema público do mundo ganhou nas redes sociais em plena pandemia. A empresa Arquimedes mediu a mobilização: 98,5% dos tuítes foram contra o texto, de acordo com o levantamento publicado pelo jornal O Globo, uma rara unanimidade para a rotina da polarização política.

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Bolsonaro foi às redes se justificar: estava revogado o decreto, cujo “o espírito”, ele frisou, não tinha nada a ver com privatização, mas, sim, com a ideia de buscar recursos privados para finalizar 4.000 UBS inacabadas. O texto fez o Governo passar o dia se explicando e provocou reações até de órgãos colegiados como o Conass, conselho que reúne secretários estaduais da Saúde. “Por força de lei, decisões relativas à gestão do Sistema Único de Saúde não são tomadas unilateralmente”, diz a nota dos secretários. Bom, nem sequer o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, assina o texto.

Mesmo revogado, o decreto deixa pistas importantes. A operação abortada acontece num momento de especial movimentação do grande capital ligado à saúde, no Brasil e no mundo, alerta Mario Sheffer. Professor da Escola de Medicina da USP e especialista em saúde pública há décadas, Sheffer também acompanha de perto as apostas dos investidores privados no setor, um mercado aquecidíssimo com a covid-19. “Pela audácia, é preciso esclarecer que interesses estão por trás. Jabuti não sobe sozinho em árvore”, diz ele, aplicando o jargão de Brasília usado para descrever quando um trecho aparentemente alheio aparece de repente num texto legislativo.

Para o professor, vários aspectos do decreto “curto e surpreendente”, que saiu da equipe de Paulo Guedes e do influente setor de PPIs (Programas de Parcerias de Investimentos), não fecham. Primeiro, o fato de que a atenção primária já é, em parte, “privatizada” há pelo menos duas décadas. Na maior parte da rede são as privadas OSS (Organizações Sociais de Saúde) que administram unidades e fazem a gestão de recursos humanos. Por isso, Sheffer considera improvável que o objetivo seja apenas prospectar quem tem interesse em finalizar postos de saúde, mas sim disputar um atrativo mercado hoje nas mãos dessas entidades filantrópicas.

“Qual o interesse da construção civil em fazer 5.000 predinhos?”, pergunta Sheffer com uma cadenciada ironia mineira. “Não é assim que o setor de saúde historicamente age. É o mesmo setor privado que aprovou o capital estrangeiro em 2015, com a Dilma, é o mesmo setor privado que tentou emplacar algumas vezes os planos populares e não conseguiu. Esse setor é próximo de qualquer governo e ele sempre ganha.”

O professor da USP descreve investidores, incluindo os estrangeiros, de uma área em franca em ebulição, indo às compras, com novas start-ups fundadas por ex-nomes do mercado financeiro, com gente em busca de novos modelos de negócio e de formatar novos produtos para a atenção primária. Tudo depois de um período de expansão de clínicas populares privadas e com os caixas turbinados pelo ano pandêmico. Estão absolutamente interessados em telemedicina, que foi legalizada na pandemia. "Isso deve ser um dos interesses do setor privado na atenção primária capilarizada, presente no país inteiro”, diz Sheffer, e soa como uma mina de ouro em dados.

No saldo do dia, além das perguntas sobre o decreto-efêmero, fica também a mobilização pró-SUS. “O decreto serviu para ver que, em função da pandemia, o SUS passa a ser valorizado e percebido como essencial para uma parcela maior da população, inclusive a que não usa. O momento é de retomada da confiança no SUS. Isso é bom.”


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