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No pós-covid, ‘home office’ e comércio perto de casa. Nas franjas de São Paulo, essa realidade está distante

Pesquisa de A Vida no Centro revela como a pandemia acelerou mudanças comportamentais entre os paulistanos das classes mais altas. Áreas pobres, porém, ficam fora dessa tendência

Apartamentos de luxo são vistos de uma viela da maior favela da cidade, Paraisópolis.
Apartamentos de luxo são vistos de uma viela da maior favela da cidade, Paraisópolis.AMANDA PEROBELLI (Reuters)
Diogo Magri

Presente na realidade brasileira desde meados de março, a pandemia da covid-19 forçou alterações na rotina de pessoas por todo o planeta. Grandes aglomerações viraram lives, reuniões de trabalho e aulas se tornaram videoconferências e refeições em restaurantes foram substituídas por jantas caseiras ou constantes delivery. Da mesma forma que casas deixaram de ser somente dormitórios para ganharem funções sociais e profissionais, regiões antes residenciais passaram a ter uma demanda maior de comércio por parte da população que deixou de se deslocar diariamente ao centro e começou a viver mais em casa. Assim, o home office e o desenvolvimento de bairros dormitórios parecem ser consequência da pandemia que ficarão no pós-vacina. No entanto, é necessário levar em conta os recortes socioeconômicos da cidade antes de fazer qualquer prognóstico sobre qual será a herança do vírus em nossas rotinas.

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Em linhas gerais, essa é a conclusão da pesquisa A casa e a cidade: impactos da pandemia na vida urbana, tendências e insights, realizada entre junho e agosto de 2020 pelos jornalistas Denize Bacoccina e Clayton Melo, cofundadores d’A Vida no Centro, uma plataforma de informação e inteligência sobre o centro de São Paulo. Os pesquisadores buscaram, com o relatório, apresentar possíveis mudanças, forçadas ou intensificadas, com a quarentena que podem representar uma melhora na qualidade de vida e, por isso, permanecer na rotina paulistana após a pandemia.

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A começar pela casa, que acumulou funções com a pandemia. “A covid-19 gerou a casa como um hub da vida. É o ambiente para trabalhar, estudar, cozinhar, assistir a shows, peças de teatro, fazer atividades físicas, se divertir”, explica Melo. “E isso deve permanecer em grande medida após a vacina, porque a pandemia acelerou mudanças comportamentais”. Segundo a pesquisa, 77% dos entrevistados se sentiram mais produtivos trabalhando de casa e 41,3% disse querer continuar com o modelo de home office após a vacina. Para Melo, esse é o ponto onde deve se notar a maior diferença entre pré e pós-covid-19. “O modelo híbrido de trabalho remoto é o que deve permanecer, com alguns dias trabalhando em casa e outros no escritório”, afirma o pesquisador. Segundo Melo e Bacoccina, a manutenção desse teletrabalho é o que pode provocar um impacto “muito grande” na dinâmica espacial de áreas da cidade, uma vez que habitantes de bairros distantes dos maiores centros de emprego passarão mais tempo em suas casas.

“Isso deve estimular surgimento de serviços em bairros que antes eram só dormitórios. Agora são novas centralidades. O trabalho vai passar por uma descentralização que fortalece o comércio local em locais afastados do centro”, defende Melo. Bacoccina completa: “Essa é a principal mudança que veio para ficar. Prédios corporativos já estão com uma vacância maior do que antes da pandemia. São Paulo foi urbanizada numa lógica de bairros separados, residenciais e comerciais, e isso vale tanto para bairros sofisticados quanto para populares”, diz a jornalista. “Não é pra todo mundo porque não é todo mundo que pode ficar em casa, mas o uso misto vai se fortalecer”, projeta. De acordo com a pesquisa, 65% das pessoas desejam uma vizinhança com mais serviços, e 56% afirmam dar preferência ao comércio local na hora de fazer as compras.

Entretanto, os próprios autores admitem que a pesquisa tem suas ressalvas. “Levamos em conta como tendências, não algo que servirá para 100% das pessoas. Talvez não valha para extremos da cidade, mas sem dúvida dá para comparar um bairro periférico da zona leste com um residencial no Morumbi, porque os dois são vazios e têm densidade para um comércio local”, comenta Denize.

Arquiteta e urbanista que discute as relações espaciais nas periferias, Kelly Fernandes concorda com as ressalvas. Para ela, não é possível afirmar que as tendências apontadas no relatório servirão para locais habitados pela parte mais pobre da população. “Inúmeras pessoas ainda precisam se deslocar para realizar trabalhos que não são possíveis à distância e essenciais para que as classes mais altas permaneçam em casa, como serviços de entrega”, pontua ela. “Evitar fazer longos deslocamentos pode fortalecer a descentralização do trabalho, mas nas periferias a gente vê aparecer serviços como lojinhas em garagens e comércios de rua. Não é só uma economia criativa, é uma forma de lidar com o desemprego e o aumento da informalidade”, completa Fernandes.

Denize Bacoccina e Clayton Melo.
Denize Bacoccina e Clayton Melo.

Kelly não descarta o fato de que, mesmo com a pandemia, muitas pessoas seguem se deslocando entre periferias e áreas centrais pela impossibilidade de digitalização do trabalho, mas ao mesmo tempo vê aspectos da realidade do home office presente em bairros menos abastados, bem como o lazer com lives de artistas e pedidos de comida via aplicativo. “É sempre bom tentar olhar pras periferias sob uma ótica não estigmatizada, porque várias realidades coexistem nesses espaços. Só não podemos ignorar o fato de que muitas dessas áreas compartilham de indicadores socioeconômicos baixos”, diz.

A mesma lógica é transportada para dentro de casa. Além dos 77% que se sentiram mais produtivos no trabalho remoto, a pesquisa também constatou que 45% dos entrevistados avaliaram as condições para continuar no home office como totalmente satisfatórias e 26,7% apontou o desejo de se mudar para uma residência maior. “Como vivemos em uma sociedade machista, o aumento de produtividade precisa ser visto ao lado de questões de gênero, principalmente nas periferias”, comenta Fernandes. “Vemos uma sobrecarga de trabalho em cima das mulheres em muitas casas, visto que elas precisam continuar trabalhando, cuidar das crianças e garantir as refeições. Isso é vivido de forma mais intensa e com recursos mais limitados por mulheres periféricas e negras”, garante.

Da mesma forma, a conclusão é que a maioria das pessoas que vivem em periferias teria mais dificuldades de estruturar ou melhorar seus lares a ponto de transformá-los em totalmente satisfatórios para o home office ou videoconferências, quando comparados a regiões com indicadores socioeconômicos maiores. “Mas não gosto de generalizações. O que mais me preocupa é que deveria haver participação dos empregadores na adaptação de condições pra realização de trabalho nos lares, algo que está sendo internalizado pelos empregados”, opina a urbanista. “Por mais que eu queira fugir de estigmas, não podemos apagar a forma com as quais as periferias estão vivendo a pandemia. São muitas impossibilidades, espaços apertados, internet de má qualidade. É difícil ter um ambiente tranquilo [onde possam ser aplicadas as tendências vistas na quarentena]”, conclui.

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