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Tribuna
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A decisão de Paulo Mendes da Rocha e a urgência de garantir a preservação nossos acervos arquitetônicos

O IAB-SP convida a instituições detentoras de coleções, sejam elas públicas ou privadas, que participem da criação de uma Rede de Acervos de Arquitetura e Urbanismo

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O recente envio à Portugal do acervo completo de Paulo Mendes da Rocha, um dos maiores arquitetos brasileiros vivos, suscitou grande debate sobre os motivos e os impactos de tal decisão, considerando a conjuntura de desprezo governamental pelo conhecimento e pela cultura. Em um país que passou pelo drama recente do incêndio do edifício e coleções do Museu Nacional, dos cortes nos financiamentos em projetos de cultura e educação, a questão levantou uma discussão sobre a urgência de meios para garantir melhores condições para nossos acervos.

Desde dezembro de 2018, o IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil, departamento de São Paulo) vem dialogando com um conjunto de organizações e especialistas no tema com o objetivo de criar as condições necessárias para estabelecer uma rede que integre, em uma só plataforma de busca, esse importante patrimônio cultural, constituído dos projetos, notas, esboços e fotos, entre outros testemunhos materiais do processo de concepção intelectual de edifícios e cidades brasileiras. Diante do rápido aumento no interesse sobre o assunto, o IAB-SP decidiu tornar público o convite para que instituições detentoras de coleções, sejam elas públicas ou privadas, participem da criação de uma Rede de Acervos de Arquitetura e Urbanismo.

Apesar da excelência reconhecida internacionalmente de alguns centros, há no Brasil muitos arquivos dispersos e em situações de conservação e acesso distintas —na administração pública, nas universidades, em entidades culturais e em escritórios particulares, como o de Paulo Mendes, cujo acervo contém 9 mil itens. O que pode parecer apenas um problema é também uma potência, pois aponta para a possibilidade de se constituir um conjunto de impressionante dimensão e valor cultural, se bem integrado. Entre os maiores acervos está o da FAUUSP (Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo). Só nele há, contabilizando apenas desenhos, cerca de 400 mil ítens de arquitetos como Carlos Millan, Vilanova Artigas e Ramos de Azevedo. Acervo comparável ao das maiores coleções do mundo, como à da Avery Library, da Universidade de Columbia, nos EUA, que guarda 1 milhão de desenhos. Ou à da Riba (Royal Institute of British Architects), em Londres, fundada em 1834, onde há cerca de 2 milhões desses documentos.

Para se ter uma ideia do potencial de uma rede brasileira, basta observar o tamanho dos conjuntos disponíveis hoje em alguns dos mais reconhecidos acervos (considerando todos os tipos de itens, não apenas desenhos). Na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o acervo do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo é composto por cerca de 78 mil itens, enquanto o Instituto Bardi reúne cerca de 23 mil. A Coleção Prestes Maia, da biblioteca municipal de mesmo nome, tem 12 mil itens, enquanto o próprio IAB-SP tem 30 mil ítens, contando apenas documentos. Se somados ao acervo completo da FAUUSP, aos acervos de instituições governamentais, como secretarias de desenvolvimento urbano e proteção do patrimônio, que guardam de dezenas a centenas de milhares de itens cada, além de pequenos e médios acervos acervos particulares que podem ser estimulados a catalogar seus documentos para participar de uma rede, estamos falando de cerca de 1 milhão de itens que podem ser rapidamente articulados em tal iniciativa, em uma estimativa conservadora.

Os acervos arquitetônicos são conjuntos sensíveis por diversos fatores. Em primeiro lugar, desenhos precisam de espaços de guarda específicos e em condições controladas, como ocorre com mapas. Além disso, o desenho é uma linguagem peculiar que envolve várias técnicas de representação de suas informações. Sua adequada interpretação, necessária aos esforços de escolha das peças destinadas à preservação, demanda arquivistas capazes dessa leitura. Também compõem esses conjuntos fotos, manuscritos, memoriais, maquetes, livros, entre outros objetos com necessidades específicas de conservação.

Um das primeiras etapas da preservação do patrimônio cultural construído é o levantamento de documentos em acervos. Eles orientam tanto a decisão de se tombar um bem, pois dão detalhes sobre seu valor cultural, como os esforços de intervenção ou restauro. Que partes do edifícios são estruturais, que partes podem ser mais facilmente substituídas quando deterioradas? Como foi composta a argamassa que reveste sua fachada? No cotidiano das reformas arquitetônicas, é também muito comum se investigar, a partir dos desenhos, por quais paredes passam as instalações hidráulicas e elétricas. Da mesma forma para intervenções urbanas, que dependem do mapeamento de infraestrutura presente no subsolo.

Os acervos de arquitetura também são fundamentais para os estudos acadêmicos, especialmente os históricos, uma vez que revelam como se desenvolveram as ideias arquitetônicas no desenrolar do tempo. Como uma das principais formas de exercício da arquitetura é o desenho, o processo de pensamento do arquiteto se revela nele de forma muito clara. Fotos, notas, correspondências e livros fornecem, por outro lado, pistas sobre a aproximação entre arquitetos, clientes, parceiros e colaboradores. Não por acaso, o surgimento de coleções de arquitetura em acervos institucionais coincide com o renovado interesse pelos estudos históricos dos anos 1970, quando a história da arquitetura ganhou autonomia e peso como disciplina. Até então, a maioria dos países não possuía qualquer esforço sistemático para preservar documentos oriundos da prática de escritórios privados, sendo a Inglaterra uma notória exceção.

Quando coleções têm o acesso facilitado pela incorporação em acervos institucionais, também se espera um desenvolvimento nas pesquisas sobre esse corpus documental. Depois que o MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York) adquiriu o acervo de Mies Van der Rohe em 1977, houve um boom de estudos sobre a produção do arquiteto alemão radicado nos Estados Unidos, com consequente popularização de sua obra.

Além dessa função mais estritamente documental, os acervos de arquitetura têm se tornado mais importantes como material para exposições feitas por renomadas instituições da área da arte e da cultura, tanto no Brasil como no mundo. Foi possivelmente uma exposição no MoMA, em 1943, o acontecimento responsável por tornar a arquitetura brasileira mundialmente conhecida.

Com uma estrutura de conservação, catalogação e acesso de nosso rico acervo arquitetônico conectada em rede, o que se espera é fomentar o reconhecimento da arquitetura brasileira como uma de nossas mais ricas manifestações, impulsionando estudos e exposições e facilitando esforços de preservação do patrimônio construído e a elaboração de novas narrativas. E quem sabe então possamos evitar a proliferação, em nossas cidades, de edifícios meramente copiados de grandes centros financeiros como Miami ou Dubai, que não estabelecem qualquer diálogo com nossa realidade cultural e ambiental.

Fernando Túlio, presidente, e Sabrina Fontenele, diretora de cultura do Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento São Paulo.

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