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A música trans negra que desafia o Brasil conservador

As artistas Linn da Quebrada e Jup do Bairro enfrentam o racismo e a transfobia ao ritmo de funk brasileiro com a produtora e Dj Badsista

À esquerda, Linn da Quebrada, à direita, Jup do Bairro. No centro, a produtora Badsista.
À esquerda, Linn da Quebrada, à direita, Jup do Bairro. No centro, a produtora Badsista.Gabriel Renne/Pedrocks/Cai Ramalho
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Quando você mora em um país cujo presidente chegou a dizer que preferia que seu filho “morresse em um acidente” a ser gay, não hesita em trazer à tona sua misoginia e coleciona comentários racistas, ser uma mulher trans negra transforma sua voz e seu corpo em um meio de expressão político, tanto no espaço privado como no público. Linn da Quebrada (São Paulo, 1990) e Jup do Bairro (São Paulo, 1993), duas mulheres trans que estão nadando contra a corrente da indústria musical brasileira, conhecem esse desafio e trabalham há anos para romper esse discurso do ódio.

“Sexualidade e gênero são campos abertos de nossas personalidades / O que pode um corpo sem juízo?”, se pergunta Jup do Bairro em seu álbum de estreia, Corpo sem Juízo (Autoproduzido, 2020), no qual nos convida a refletir sobre diversidade e limites físicos autoimpostos.

Neste trabalho lançado em agosto passado, a artista brasileira usa seu corpo, o de “travesti gorda, bixa, negra e periférica”, como ela própria se define, e o coloca no centro de uma batalha social contra os cânones corporais, estéticos e de gênero em um país como o seu, o Brasil, no qual as minorias, e especificamente o coletivo LGTBIQ+, tiveram que se levantar de novo diante das ameaças do presidente Jair Bolsonaro de cortar seus direitos.

Por meio dos ritmos do baile funk e da música eletrônica, Jup constrói uma narrativa sobre a libertação dos corpos e a reafirmação da própria identidade. Em Transgressão, tema que abre este EP, compara seu processo trans a uma lagarta em metamorfose, traçando sua jornada em um ritmo onírico de sintetizadores. "No sufoco criado da minha própria mudança/ Uma mucosa com vazio e falsas esperanças/

No aperto do casulo da minha própria criação/ Pensando em morte inevitável, me preparo pra morrer na solidão", canta Jup do Bairro nessa canção composta quando ainda era adolescente.

Mas no sufoco pessoal que expressa em suas canções existe também um grito coletivo e uma denúncia social. Em Corpo sem Juízo, a canção que dá nome ao disco, a artista brasileira dá nome próprio às centenas de pessoas trans e travestis assassinadas todos os anos em seu país. As cifras, com 130 assassinatos em 2019, fazem do Brasil o país mais perigoso para esse coletivo. Por trás dos números, jovens como Theusa Passarelli, conhecida ativista trans que foi morta no Rio de Janeiro, e a quem Jup do Bairro presta homenagem, resgatando e sampleando sua voz para esta canção. “É como enfrentar a morte e permanecer imortal”, entoa Jup na letra.

Igualmente contundentes são os temas de Linn da Quebrada: “Me arrumei tanto pra ser aplaudida mas até agora só deram risada”, diz em A Lenda. Uma letra que faz parte de seu primeiro disco, Pajubá (Vinyl, 2017), e na qual ataca um “eles” que parece ser um reflexo do poder político, mas também dos executivos da indústria musical que por anos a mantiveram à margem. Porque, embora a música brasileira tenha raízes na cultura negra, os músicos de maior renda ainda são principalmente brancos e cisgênero.

Com Pajubá, Linn ajudou a combater essa realidade, com letras que mesclam humor gay e crítica social, conseguiu que travestis e trans negros pudessem se ver refletidos na música e passassem a ser reconhecidos e incluídos na corrente artística principal. Neste álbum, Linn redescobre sua identidade e leva às últimas consequências a ideia do corpo como terreno político.

Uma filosofia que ressoa nas suas canções e em todos os seus projetos artísticos, em que a dança e a presença cênica se tornam uma luta visceral. Isso fica claro em seus shows, performances e na participação em documentários como Meu Corpo é Político (Alice Riff, 2017) e Bixa Travesty (Kiko Goifman e Claudia Priscilla, 2018). Um filme autobiográfico, este último, em que Linn fala abertamente do machismo que enfrentou no final de sua transição e em que esta artista brasileira proclama que foi ela quem “quebrou a costela de Adão” para se tornar a “nova Eva”. Um ressurgimento que agora continua no que será o seu novo disco, Trava Línguas (2020), do qual já antecipou nas suas redes A nova Eva, peça musical sobre a libertação dos corpos.

Bixa Travesty também mostrou a poderosa aliança de Linn da Quebrada e Jup do Barrio. Uma bomba artística de mulheres trans, negras e periféricas dispostas a abrir novos espaços e questionar juntas o status quo de um contexto político tão conservador como o do Brasil.

Crucial em todo esse processo foi a produção dos álbuns de ambas por Badsista. Com apenas 26 anos, esta jovem DJ e produtora é responsável por promover novas narrativas na indústria musical do país e acolher artistas que permanecem fora do circuito comercial. Em 2016 fundou o coletivo Bandida, uma iniciativa trans feminista que busca dar voz a outras mulheres do cenário musical brasileiro, principalmente artistas negras, queer e das classes pobres. Novos espaços que inspiram outros a seguirem o seu próprio caminho e aos quais se soma o programa TransMissão, uma espécie de celebração da diversidade veiculada no Canal Brasil, em que Linn e Jup falam sobre raça, sexualidade e gênero com diferentes personalidades.

E aí, a partir da resistência, é como transformaram a luta por sua identidade pessoal em uma revolução coletiva e política. Do íntimo ao público. Uma estrondosa centelha tangível em seus corpos, na dança e na música. Do samba ao tropicalismo e ao baile funk, no Brasil sempre houve vozes que se levantaram contra as atitudes repressivas, e agora Linn, Jup e Badsista dão continuidade a essa tradição para estimular a mudança social.

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