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Os cinco tiros que escancaram o clima de guerra da política brasileira

Assassinato de candidato a vereador em Minas após denunciar prefeito joga luz sobre a violência política no país. Segundo ONG, Brasil teve 125 casos de execuções ou atentados contra políticos desde 2016

Diogo Magri
Arte da campanha de Cassio Remis a vereador de Patrocínio-MG.
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Por volta das 15h da quinta-feira, 24 de setembro, Cassio Remis, advogado e candidato a vereador pelo PSDB de Patrocínio (MG), fazia uma transmissão ao vivo em sua página do Facebook para denunciar uma obra da Prefeitura. Meia hora depois, Remis foi assassinado à luz do dia e de câmeras na frente da Secretaria Municipal de Obras pelo próprio secretário, Jorge Marra, que também é irmão do prefeito da cidade de 90.000 habitantes do Triângulo Mineiro. A história de rivalidade política choca pela consequência trágica, transporta o coronelismo para a era digital e preocupa pela chegada de um período eleitoral num país onde, recentemente, o debate de ideias tem dado lugar a episódios de violência.

O alvo da denúncia feita em tempo real por Remis era a Prefeitura de Patrocínio, comandada desde 2016 pelo adversário político do advogado, Deiró Marra (PSB). Ambos eram candidatos a prefeito da cidade nas Eleições municipais de 2016, vencidas por Marra com 48% dos votos. Remis ficou em último lugar entre os cinco candidatos, com apenas 3,74% dos votos. Marra foi eleito com 22.868 votos, enquanto Remis teve 1.756 votos. Um dia após a morte do candidato a vereador, a página de Cassio Remis no Facebook tinha mais de 19.000 seguidores.

Apesar do resultado ruim na tentativa de assumir a Prefeitura, o passado político de Remis, aos 37 anos, o creditava a buscar o cargo. Ele foi eleito o vereador mais novo da história da cidade em 2008, quando tinha 25 anos, e cumpriu dois mandatos até 2016 ―foi presidente da Câmara entre 2013 e 2014. O ex-vereador buscava agora retornar à Câmara municipal com um discurso crítico ao atual prefeito. Em suas redes sociais, denunciou medidas da Prefeitura relacionadas à crise sanitária causada pela pandemia de covid-19 e à falta de recursos das creches municipais. Recentemente, com o lema “corrupção com os dias contados”, chamou Marra de condenado pela Justiça Eleitoral pela “prática de condutas vedadas dentro do processo eleitoral do município”, no mesmo vídeo no qual acusa o prefeito de compra de votos.

A acusação que levou à morte de Remis era mais específica, sobre uma obra feita pela Prefeitura na Avenida João Alves do Nascimento, no centro da cidade. Segundo o candidato, a Secretaria de Obras da cidade estava utilizando funcionários e equipamentos públicos para reformar a calçada de uma casa que seria o local do comitê eleitoral da campanha de Deiró Marra à reeleição. “Para nossa surpresa, mas não para nossa estranheza, nós nos deparamos desde ontem com um arsenal de funcionários da Prefeitura sendo utilizados para fazer o calçamento de onde possivelmente será o comitê eleitoral do prefeito”, afirmou Remis na live. Pouco mais de um minuto após começar a gravar, ele foi interrompido por Jorge Marra, que chegou de carro e pegou o celular de Remis. “Agora chegando o secretário para me agredir” foram as últimas palavras gravadas do candidato a vereador.

Segundo o tenente-coronel Salomão Queiroz Caixeta, Remis foi atrás do secretário para recuperar o celular e o confrontou em frente à entrada da Secretaria de Obras, onde, como mostram as câmeras de vigilância, Jorge Marra atirou cinco vezes no candidato e fugiu em seguida. Remis morreu na hora e Marra segue foragido. Logo após a tragédia, o prefeito Deiró Marra exonerou o irmão do cargo, declarou luto oficial na cidade e deu entrevista coletiva para deixar claro que não participou do crime e não sabe para onde Jorge fugiu. “Esperamos que todos os fatos sejam elucidados e apurados de forma transparente pelas polícias, com a mais absoluta isenção de tudo isso. Digo aqui que todas minhas diferenças de campo político sempre foram resolvidas através do debate. Infelizmente não conheço e não sei de nenhum fato e de nenhuma ação que culminou nessa tragédia”, se defendeu. Na mesma entrevista, Marra também chamou as acusações do ex-vereador de “infundadas”. “Reformar os passeios é uma questão trivial, não tem nada a ver”, afirmou.

“Qualquer pessoa próxima à política se preocupa com um acontecimento desse”, constata Leandro Consentino, cientista político e professor de Política e Sociologia do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). “É uma consequência de todo o clima implantado no Brasil, onde as retóricas inflamadas se materializam em agressões físicas, com o acréscimo da retórica armamentista. O assassinato só aconteceu porque uma das pessoas exaltadas estava armada”, argumenta. Consentino aponta que a violência historicamente se faz presente na sociedade e no debate político brasileiro, mas o período atual parece ser o mais propício para “conversar de forma menos civilizada” desde a redemocratização do país, de acordo com o especialista.

A opinião de Consentino é corroborada pela pesquisa sobre violência política e eleitoral feita pelas ONGs Terra de Direitos e Justiça Global, que atuam na área de direitos humanos. No levantamento, foram registrados 327 casos de violência política entre 2016 e setembro de 2020, dos quais 125 são assassinatos ou atentados. Com 11 casos destes, Minas Gerais é o segundo Estado com mais violência eleitoral, ao lado de Pará, Maranhão e Ceará e atrás do Rio de Janeiro (18). Segundo a mesma pesquisa, em 91% (114) dos atentados ou assassinatos as vítimas são vereadores, prefeitos ou vice-prefeitos.

Dados do Ministério da Defesa comprovam o crescimento dos episódios ao longo dos últimos anos. Segundo o que foi divulgado pelo órgão nas respectivas datas, o número de cidades brasileiras que pediram auxílio das Forças Armadas para garantir a segurança nos dias de votação foi de 326 municípios nas Eleições de 2014 para 408 no pleito municipal de 2016. Na última votação do país, em 2018, 28.000 policiais atuaram em 598 cidades.

“Exemplos de Celso Daniel, Marielle Franco e tantos outros provam que o episódio de Patrocínio não é tão distante do que acontece historicamente na política brasileira. Mas o momento reforça, o que é muito ruim para a democracia”, pontua Consentino. “Quando um presidenciável fala em campanha que vai 'metralhar a petralhada’, em determinado momento algum adversário político pode se achar no direito de levar isso pro âmbito eleitoral. Não é o caso de culpar alguém diretamente [além do assassino], mas há uma retórica por parte de quem governa o país que contribui [para tragédias como essa]”, completa.

A postura do prefeito Deiró Marra, na visão do cientista, mantém certa distância do irmão e da vítima. Se antes era forte candidato à reeleição da Prefeitura, Consentino acredita que Marra dificilmente não será afetado pelo assassinato, mesmo que nada comprove sua influência no crime cometido pelo irmão. “Ele deve sofrer um revés nas urnas porque a população costuma receber isso de forma bem ruim. Até porque o vereador não foi punido por estar fazendo algo errado. Ele estava fazendo o trabalho de fiscalizar e denunciar supostas ilegalidades da Prefeitura”, opinou o professor.

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