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“Campanha antigênero nas escolas dificulta detectar abuso contra menores de idade”

Pesquisador Lucas Bulgarelli foi a campo ver como funciona e quais os efeitos das mobilizações que tentam cercear a discussão sobre sexualidade nos estabelecimentos de ensino

O antropólogo e pesquisador Lucas Bulgarelli.
O antropólogo e pesquisador Lucas Bulgarelli.Lela Beltrão
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AME8199. BRASILIA (BRASIL), 03/02/2020.- La ministra brasileña de Mujeres, Familia y Derechos Humanos, Damares Alves, habla durante el lanzamiento de la nueva campaña nacional del Gobierno para le prevención del embarazo en adolescentes este lunes, en Brasilia (Brasil). EFE/ Joédson Alves
Opinião | O ventre como instrumento de poder

O pesquisador Lucas Bulgarelli foi a campo investigar como funcionam e quais os efeitos das campanhas contra a “ideologia de gênero”, a ferramenta dos conservadores e ultraconservadores para cercear a discussão da sexualidade nas escolas. O antropólogo foi a 15 cidades do sul e centro-oeste do Paraná, numa primeira incursão da pesquisa que, não fosse a pandemia, incluiria também Santa Catarina. Conversou com profissionais da saúde, da educação e da assistência social de Foz do Iguaçu, Cascavel e arredores. O que já colheu permite traçar uma fotografia de como o Brasil que votou massivamente em Jair Bolsonaro trata essas questões.

O quadro é preocupante, avalia Bulgarelli, que faz seu doutorado na USP e coordena o Núcleo de Pesquisas em Gênero e Sexualidade da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP. Um ponto especialmente delicado é que o tipo de campanha ―que engaja bem mais que apenas extremistas, ele frisa― acaba reduzindo o espaço nas escolas onde as vítimas de violência sexual poderiam falar. “O que que as campanhas fazem é amedrontar profissionais que discutem sobre educação sexual e gênero, direitos sexuais e reprodutivos, ferramentas que comprovadamente colaboram para que jovens possam identificar abusos, reconhecer e denunciar situações de violência”, aponta. Bulgarrelli lembra que a Câmara de Vereadores de São Mateus, a cidade da menina capixaba de 10 anos que fez aborto após ser estuprada por anos pelo tio, foi uma das cidades que teve acalorado debate para barrar a “ideologia de gênero” nas escolas. A criança teve de ser incluída no programa de proteção a testemunhas por causa do acosso ultraconservador, que envolveu o envio de emissários da ministra antiaborto Damares Alves (Direitos Humanos) à cidade ―segundo reportagem da Folha de S. Paulo, a equipe da ministra agiu diretamente para tentar impedir a interrupção da gravidez, oferecendo um hospital para que ela seguisse com a gestação.

Pergunta. Comentando o episódio do assédio ultraconservador à menina capixaba violentada, você disse que a campanha contra a chamada “ideologia de gênero” é uma das operações mais bem sucedidas da direita e ultradireita. Por quê?

Resposta. Embora a origem da expressão “ideologia de gênero” esteja vinculada à produção de teoria teológica cristã por setores da Santa Sé, a difusão da defesa dessas ideias têm sido articuladas em agendas e campanhas que extrapolam as igrejas, padres e pastores. No Brasil, a “ideologia de gênero” produz alianças entre dois setores que disputam o mercado da fé, as igrejas católicas e evangélicas. É essa proposta de uma rebiologização das diferenças sexuais e de um combate aos direitos de gênero e sexualidade que consegue aglutinar setores religiosos e sociais distintos. Jair Bolsonaro entendeu há pelo menos 10 anos a potência da “ideologia de gênero” como instrumento aglutinador de uma moral conservadora compartilhada por várias camadas da população, quando passou a se proclamar como o deputado que “descobriu o kit gay”, no Governo Dilma, apelido que deu ao “kit anti-homofobia”. Embora o “kit anti-homofobia” nunca tivesse de fato se tornado uma realidade, foi a denúncia insistente sobre isso que o possibilitou ganhar legitimidade na defesa de uma moral tradicional focada na família e na defesa da vida. São elementos que passam a compor não apenas a sua vitoriosa campanha em 2018 como a de candidatos a deputados estaduais, federais e senadores que também se elegeram utilizando essa plataforma .

P. Você foi a campo entender o que pessoas pensam quando falam contra a “ideologia de gênero”. O que as mobiliza? Que fibra de emoção essa campanha toca?

R. Uma das características importantes da “ideologia de gênero” é seu caráter mutável e adaptável a múltiplas realidades. O uso político do escândalo e da polêmica operam no sentido de conferir materialidade a questões que muitas vezes são abstratas, como a disputa sobre o caráter biológico ou socialmente construído do gênero e da sexualidade. Então é importante entender que existe, sim, uma racionalidade na proposição das campanhas antigênero e “pró-vida”, que advogam contra um mundo à beira da corrupção econômica, praticada por políticos, e à beira da corrupção moral, exercida por “ideólogos de gênero”, feministas e LGBTI+. Atribuir ao gênero e à sexualidade um caráter diabólico, perverso e degenerescente também significa autoatribuir a si mesmo uma valoração moral de quem faz o bem e luta pelo bem. Essas ideias não são transmitidas exclusivamente como discursos, mas também como práticas, sentimentos e emoções. A noção do que seria uma maternidade e uma paternidade satisfatórias, que dá conta de proteger seus filhos e a família dos perigos que vêm de fora, é bastante utilizada para mobilizar afetos e emoções legítimos e insuspeitos, como o de ser uma boa mãe, uma boa mulher. Por isso há uma disposição de quem apoia ou participa de articulações antigênero e “pró-vida” em se enxergarem em uma cruzada contra o mal.

P. Estamos falando de uma minoria que vai à porta do hospital em Recife contra a criança violentada, mas também sobre uma massa da população que condena o aborto...

R. Há os que discordam de atuações de extremistas como a de Recife, mas são justamente essas atuações que alargam o tecido social e possibilitam questionar inclusive as hipóteses restritas de aborto legal consideradas pela lei criminal. Na eleição de Jair Bolsonaro, era bastante comum ouvir de segmentos de seu eleitorado que suas falas mais violentas eram “da boca para fora” e que não seriam convertidas em ações caso se tornasse presidente. Mas o que temos acompanhado desde o início da gestão é um verdadeiro apagão das políticas de gênero e sexualidade no Brasil.

P. Você menciona pesquisa com famílias onde ciclos de violência e estupro é transgeracional. Pode explicar como isso e a pedofilia aparecem nos seus estudos?

R. A minha investigação no doutorado tem consistido em mapear a circulação da “ideologia de gênero” no Brasil. Então uma das primeiras tarefas foi compreender os conflitos e os contextos relacionados às campanhas antigênero em cidades brasileiras que votaram pesadamente em Bolsonaro. Esse exercício me levou a escolas públicas e Câmaras Municipais de cidades que vinham sendo palco de disputas entre pais e profissionais da educação e de proposições legislativas no sentido de vetar o debate de gênero e sexualidade nas escolas e nos equipamentos públicos. Conforme fui conversando com professores e diretores, muitos deles me relatavam que as campanhas de vedação desses debates na escola e o receio de educadores em abordar sobre gênero e sexualidade em sala de aula dificultavam intensamente a capacidade desses profissionais em perceber casos de abusos sexuais contra menores de idade. A escola em muitas situações funciona como um dos únicos espaços em que a criança ou o adolescente não está sob vigilância dos pais e ou da família e consegue denunciar ou dar indícios sobre o abuso, o que se torna especialmente importante em um país que convive com uma incidência brutal de casos de pedofilia que ocorrem dentro do convívio familiar. Não é muito comum que o jovem ou adolescente busque os serviços de saúde e assistência social. O que as campanhas de retirada dos debates de gênero realmente fazem é amedrontar profissionais da educação a discutir sobre educação sexual, gênero, direitos sexuais e reprodutivos. São ferramentas que comprovadamente colaboram para que jovens possam identificar abusos, reconhecer e denunciar situações de violência. Fui percebendo que a emergência de manifestações que visam denunciar a “ideologia de gênero” e proibir o debate de gênero e sexualidade estava, a rigor, profundamente ligada à necessidade de manter estruturas e dinâmicas de violência, de deixar as coisas como elas são. Hoje em dia há profissionais de educação que sabem ou suspeitam de casos de pedofilia e de ciclos de estupro contra crianças e adolescentes cometidos por parentes e familiares e se veem receosos de denunciar ou comentar a respeito, sob a pena de serem não apenas demitidos como processados criminalmente e até mesmo perseguidos.

P. A cada novo caso dramático como o do Espírito Santo, há um debate tipo fla-flu entre os antibolsonaristas: Damares é ou não uma “cortina de fumaça”. O que acha?

R. Há uma visão presente em setores do campo progressista que busca classificar a atuação do Governo em demandas tidas como morais e econômicas, mas essa forma de enxergar o que está acontecendo acaba dizendo mais sobre quem classifica do que da própria atuação do Governo. A ideia de “cortina de fumaça” demonstra a incapacidade de alguns setores progressistas em compreender o modo como o conservadorismo e o neoliberalismo, ao contrário de parecerem conflitantes, na verdade se retroalimentam e colaboram mutuamente na implementação de um projeto político autoritário e retrógrado de país que visa desconstituir garantias sociais. Movimentos como o que a Damares realiza são bastante operativos para manter aquecida a base de sustentação mais radical do Governo, mas também aquele apoiador que não iria até o hospital, mas nem por isso concorda com o aborto mesmo se decorrente de estupro de menor. Enxergar as articulações antigênero e pró-vida como meras “distrações” daquilo que “verdadeiramente importa” é um equívoco grave tanto na interpretação da atuação de ministros como Damares, que parece ser uma consciência moral do Governo, como na atuação de ministros como Paulo Guedes. Ambos comungam um projeto de enxugamento do Estado, de terceirização da gestão dos conflitos relacionados ao gênero e à sexualidade para a família e da mercantilização dos serviços de educação, saúde e assistência social, como mostra a defesa do “homeschooling” feita por Damares.

P. Como projetos de Damares, como o que prega a abstinência sexual na adolescência como ferramenta de combate à gravidez precoce, se relaciona com casos como o do Espírito Santo?

R. Não há nada que a campanha de abstinência poderia ter contribuído no caso da menina do Espírito Santo, pois a lei brasileira entende que não há consentimento em uma relação sexual com um menor de 14 anos. É estupro presumido. Então não importa o que a menina fez ou deixou de fazer, ela foi violentada. A ideia de que os jovens podem por conta própria se prevenir dos “riscos relacionados ao sexo” ―onde se depreende desde namoro entre jovens até o estupro e a pedofilia― ao praticarem a abstinência é mentirosa, não tem comprovação científica e serve para relativizar a responsabilidade do crime cometido pelo abusador, questionar uma suposta intenção da jovem em provocar seu próprio abuso e manter a administração do caso como o dessa menina sob a responsabilidade dos familiares, o que de pouco adiantaria, pois foi justamente no lar onde os abusos ocorreram nesse e ocorrem em diversos outros casos.

P. Você tem frisado que coalizão antigênero é muito mais ampla do que parece...

R. É necessário entender que Damares e algumas lideranças evangélicas funcionam como vitrine das campanhas antigênero e “pró-vida”, mas que tais movimentos não se resumem a esses atores. As articulações em torno dessas pautas funcionam por meio de uma lógica transnacional que envolve entidades e organizações religiosas e não religiosas, editoras, canais de televisão e rádio, youtubers, lideranças comunitárias locais, produção teológica e paracientífica sobre o gênero e a sexualidade. Há indícios de uma crescente secularização dos argumentos das campanhas antigênero e “pró-vida”, como tem proposto a cientista política Camila Rocha, no sentido de disputar nos termos da ciência concepções como o início e a interrupção da vida. No caso mais recente, circulou pelas redes bolsonaristas um parecer médico afirmando que o risco de interromper a gravidez era similar ao da concepção, o que foi desmentido por especialistas consultados pela mídia, mas que ajuda a entender como a fé não explica tudo nesses casos. Deve-se considerar a incidência de um ativismo conservador organizado por meio de categorias profissionais, onde se encontram juízes, promotores, médicos, psicólogos. Eles desempenham uma atuação menos performativa, mas bastante efetiva na desconstituição dos direitos sociais relacionados ao gênero e à sexualidade.

P. Logo após o caso da menina de 10 anos do Espírito Santo, o Ministério da Saúde baixou portaria que mudou as regras de acesso ao aborto legal no Brasil...

R. A mudança ajuda a entender o modo que essas questões têm sido disputadas na política e no Estado. Ainda que a menina se enquadrasse em duas das três únicas hipóteses de aborto legal no Brasil, houve uma forte compreensão por parte dos grupos que foram protestar na porta do hospital e nas redes sociais de que não abortar, neste caso, significaria salvar ambas as vidas, ao passo que aqueles que defendiam o procedimento estariam defendendo a morte. As noções de vida e morte trazem consigo um conjunto de sentidos muito operativos para atribuir valores morais para cada lado da disputa. Então a edição da portaria, ainda que não elimine as hipóteses de aborto legal, o que faz é dificultar a realização da prática, seja pela criação de mais regras e procedimentos a serem cumpridos pela pessoa grávida, seja estimulando um clima de constrangimento entre profissionais da saúde ou ainda por moralizar uma questão que é eminentemente de saúde pública e que já existe no dia a dia dos hospitais. Isso nos ajuda a entender que as movimentações antigênero e “pró-vida” não visam apenas contestar a descriminalização do aborto ou a educação sexual, mas mais recentemente têm saído da defensiva atuando ostensivamente no sentido de reavaliar inclusive aquilo que já está amparado pela legislação. A ideia de que mesmo as poucas garantias conquistadas estão sob ameaça se concretiza em episódios como esse.

P. Vê relação da ofensiva anti-gênero com a tentativa de radicais de ligar opositores e personalidades antibolsonaristas, como Felipe Neto, à pedofilia?

R. Tem sido fundamental para as campanhas antigênero e “pró-vida” atribuir à esquerda, ao feminismo e às lutas LGBT a defesa da pedofilia e dos pedófilos. Essa ligação aparece já no início dessas campanhas, ora relacionando às pessoas LGBT a prática da pedofilia, ora difamando feministas e pessoas de esquerda de serem coniventes com crimes de pedofilia. É um mecanismo útil na medida em que retira a responsabilidade em ser pedófilo de desse sujeito conservador abstrato atribuindo ao adversário político a acusação apriorística de um crime que é repudiado por toda a sociedade. O que acontece hoje com Felipe Neto já acontecia há 20 anos atrás com militantes gays, lésbicas e bissexuais, guardados os devidos contextos e proporções, dada a dimensão que essas dinâmicas tomam com o uso da Internet atualmente. Ninguém é à favor da pedofilia e o sujeito que a comete não precisa defendê-la para conseguir consumar o crime, então esses argumentos funcionam mais para mistificar esses episódios atribuindo um suposto viés ideológico a um crime que depende exclusivamente do poder do abusador contra a vítima ―não à toa a incidência assustadora desse crime cometido por pais, padrastos, avós, tios e irmãos das vítimas.

P. O movimento conspiracionista QAnon, que enxerga seus adversários políticos como integrantes de uma máfia global pró-pedofilia, dá sinais de atuação no Brasil. Isso aparece já na sua pesquisa?

R. Ainda não apareceu nada relacionado, talvez comece a aparecer agora que estou olhando para o YouTube...

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