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“A covid-19 forçou uma reinvenção do fazer na escola pública. Não cruzamos os braços”

Ruthnéia Lima e Osana Morais, especialistas em alfabetização, avaliam os prejuízos causados pela pandemia sobre a educação no Piauí, mas rejeitam que ano letivo de 2020 tenha sido perdido

Ruthnéia Lima e Osana Morais com alunos de Oeiras, em 2019.
Ruthnéia Lima e Osana Morais com alunos de Oeiras, em 2019.Reginaldo Rodrigues de Oliveira
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“Neste momento da pandemia, já acumulamos prejuízos imensuráveis para as crianças”, lamenta a educadora Ruthnéia Lima, cocriadora ―juntamente Osana Morais―, do Projeto Borboleta, uma metodologia de alfabetização famosa no interior do Piauí, apontada como um dos segredos das cidades piauienses que tiveram melhora no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Não se trata apenas de uma perda de conteúdo. A falta do espaço de interação social da escola e a obrigação de isolamento, em uma fase em que a criança tem sede de conhecer, engordam a lista de violências causadas pelo coronavírus. Apesar disto, as professoras se recusam a dizer que 2020 é um ano perdido para a educação.

“A escola pública não cruzou os braços”, garante Osana Morais, diretora da Escola Municipal Casa Meio Norte, uma das referências em educação em Teresina, e berço do Projeto Borboleta. Ela vê uma luz em meio a tantas dificuldades. “A covid-19 está forçando uma reinvenção do fazer na escola pública, que, no momento de crise, fez chegar ao aluno, nas condições que esse aluno podia receber, o material xerocado, as aulas no rádio, no Whatsapp, com carro de som, pelo telefone. Não paramos. Trabalhamos mais do que antes”, garante. “No celular particular de um professor chegam aproximadamente 500 mensagens ao longo do dia. E esse professor responde a todas elas. E a criança no quintal dela, em cima de uma mesa improvisada, faz as atividades que chegam”.

As educadoras são testemunhas do impacto que a falta da escola tem na vida e nos direitos básicos das crianças. “Pense nos alunos que dependiam do lanche para sua alimentação e agora não tem mais. É muito difícil”, afirma Lima. Relatos de como os alunos mais vulneráveis driblam as dificuldades ―acesso à Internet, entendimento do material, local adequado para estudar―, para acompanhar o ensino a distancia, mostram a face perversa da desigualdade no Brasil. “Frente a essa realidade, o desafio da escola é manter o vínculo com a criança, mostrando que se importa e não desistiu dela. Incentivamos o estudo em casa, mantendo uma relação de afetividade”, afirma Lima.

Para elas, em meio a crise, há uma janela de oportunidade para se discutir mudanças na educação. O próprio comportamento das famílias em relação a escola já não é o mesmo. “Hoje, cada pai e mãe entende a labuta que é o trabalho do professor, porque, de uma certa forma, eles estão dividindo tarefas que antes eram do professor integralmente. E mesmo com limitações, seja de leitura ou de saberes, as famílias encontram formas de contribuir”, lembra Morais.

A expectativa mais otimista é que os Governos sejam forçados a mudar, inclusive, a estrutura das escolas para se adaptar às novas demandas para uma reabertura do espaço escolar. Osana Morais lembra que, ao contrário da rede particular de ensino, a grande maioria das escolas públicas ainda não tem um aparato tecnológico disponível. “Muitas ainda estão na transição do quadro de giz para o pincel”, afirma. A possibilidade de um retorno híbrido das aulas, em forma presencial e remota, vai existir investimento em tecnologia. “É necessário mais criatividade, mas também investimento e vontade, para nos reinventarmos”.

Ruthnéia Lima, no entanto, não vê condições de um retorno às aulas no curto prazo. “Não consigo imaginar distanciamento social com 30 alunos na sala. Vamos privar as crianças de brincar, de interagir?”, pergunta. “É preciso uma política pública direcionada. Sinto falta de um líder na Educação. Se pensarmos em retorno, qual a estrutura a escola terá? Precisamos de novas escolas, com qual formato? Quem vai financiar gel, máscaras? São questões complexas e, até o momento, ninguém para respondê-las”, afirma.

Como funciona o Projeto Borboleta

O Projeto Borboleta, que já alfabetizou mais de 40.000 alunos, ficou famoso com os resultados na cidades de Oeiras, no interior do Piauí, que tem uma das notas mais altas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do Estado. Mas, afinal, como funciona essa metodologia de alfabetização? “É um método educacional de transformação da prática pedagógica do professor e da aprendizagem do aluno”, resume Ruthnéia Lima.

Dentro do contexto educacional, a diferença básica do Projeto Borboleta está na forma com a qual é construída a relação entre a criança e o pedagogo. O primeiro passo é diagnosticar os níveis de leitura e escrita dos alunos de acordo com as particularidades de cada um deles. “Fazemos uma espécie de ressonância magnética no letramento e numeramento da criança. De que forma ela enxerga a estrutura das palavras e dos números”, explica.

Depois, os alunos são agrupados de acordo com o nível de leitura e compreensão, levando-se em conta quais as especificidades precisam ser desenvolvidas em cada estudante. “É um trabalho de lupa perceber quais os potenciais de cada criança, e o que pode ser otimizado. É assim que construímos nossa metodologia”, diz a educadora.

Ela lembra que cada indivíduo é diferente, mas é possível achar uma “variável em comum” por onde é puxada a metodologia de cada grupo de desenvolvimento, que se divide em etapas: borboleta, onde a criança está no ‘casulo’, nos primeiros passos da alfabetização; andorinha, um segundo passo, mas ainda um animal frágil que voa baixo; ganso, pela capacidade de organização coletiva da ave, que voa o tempo todo em bando e de forma sincronizada; e águia, que enxerga o mundo “em 360 graus”, com a capacidade de interpretar, questionar e discutir.

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