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Cruzada antiaborto tem nova vitória com portaria que dificulta o procedimento legal às vítimas de estupro

Ministério da Saúde exige que médicos notifiquem a polícia sobre a violência sexual sofrida e que a vítima assine um termo de consentimento dos riscos - incluindo o de morte - do procedimento

Marcha Nacional da Cidadania pela Vida e Contra o Aborto, em 2016.
Marcha Nacional da Cidadania pela Vida e Contra o Aborto, em 2016.Valter Campanato (Agência Brasil)
Marina Rossi

O Ministério da Saúde publicou nesta sexta-feira a edição de uma portaria que estabelece novas diretrizes para a realização do aborto legal pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para vítimas de estupro. Agora, para ter acesso ao procedimento, é obrigatório que a equipe médica notifique uma autoridade policial sobre a violência sexual sofrida pela mulher. Também coloca a cargo do profissional de saúde a coleta de possíveis provas do crime de estupro, como fragmentos do feto ou do embrião. Além disso, as novas regras exigem a assinatura de um termo de responsabilidade por parte da mulher, em que ela reconhece que, ao realizar o procedimento, sofre riscos como sangramentos, infecções e até de morte, dentre outros. À vítima também deverá ser oferecido que ela visualize o feto por meio de uma ultrassonografia, e determina que ela deve narrar, também aos médicos, detalhes da violação sofrida, apontando inclusive características do criminoso.

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Para a defensora pública de São Paulo Paula Sant’Anna Machado de Souza, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa das Mulheres, essa nova portaria é ilegal, porque excede os princípios da lei, inconstitucional, porque fere direitos como à privacidade, à liberdade e à intimidade, e inconvencional, por ferir os tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte. A defensora aponta que a portaria “desvirtua” o espaço da saúde, que deveria ser de acolhimento. “Há uma mistura da saúde com a segurança pública. Os profissionais de saúde não têm essa qualificação para coletar provas e isso pode até caracterizar um desvio de função”, diz ela.

Para apontar os riscos que a vítima pode sofrer ao realizar o aborto, a portaria cita uma cartilha da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Todo procedimento que traz risco deve ser informado”, diz a defensora. “Mas é preciso informar também sobre os riscos que uma menina pode correr caso a gestação não seja interrompida”, afirma. No Brasil o aborto é legal e assegurado pelo sistema público de saúde em três casos: quando a gravidez é consequência de estupro, se há risco de morte para a mãe ou se o feto for anencéfalo. O Código Penal, que tipifica como crime todos os procedimentos em mulheres fora desses casos, não estabelece, no entanto, a obrigatoriedade da notificação policial para assegurar o direito às vítimas de estupro.

Para a defensora, a portaria cria, portanto, barreiras ao atendimento. “O que visualizar o feto em um ultrassom acrescentaria para essa menina, adolescente ou mulher que acabou de vivenciar uma violência? O que isso traz de humanizado?”, diz. “Entendo que se trata da criação de uma etapa que pode trazer culpabilização, intimidação e vergonha. É uma etapa que do ponto de vista da saúde eu não consigo ver encaixado em um procedimento que deveria ser humanizado”.

Julia Morelli, médica de família e comunidade e diretora da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, concorda. Para ela, a exigência de uma notificação policial pode coibir tanto as mulheres que sofreram a violência, quanto a própria equipe médica a realizar o procedimento. “Um plantão médico, quando envolve a realização de um aborto já não é tranquilo. Se tiver que envolver força policial complica ainda mais o processo e afasta a mulher desse direito dela”, diz. “Além disso, muitas vezes a mulher vítima da violência não quer envolver um processo criminal. Ela quer resolver uma questão de saúde. Eu já ouvi de vítimas ’mas eu vou precisar falar com a polícia?”.

A portaria, assinada pelo ministro interino da Saúde, Eduardo Pazzuello, é mais uma vitória da cruzada antiaborto dos setores conservadores. Em junho, o Ministério da Saúde havia publicado uma nota técnica sobre a necessidade de que o acesso a métodos contraceptivos e a serviços de aborto previstos em lei fossem mantidos durante a pandemia de coronavírus. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi às redes sociais dizer que seu Governo “não apoia qualquer tentativa de legalização do aborto, caso que está afeto ao Congresso”. Mandou retirar a nota do ar e afastou os técnicos que a assinaram.

Nas últimas semanas, os conservadores mantiveram-se ocupados em assediar uma criança de 10 anos, estuprada e engravidada por um tio, que desejava interromper a gravidez. O acosso foi iniciado dentro da casa dela em São Mateus (ES), onde pastores e militantes “a favor da família” tentaram convencer a família a não realizar o procedimento. E terminou já no hospital no Recife, onde ela conseguiu realizar o aborto, depois que seu caso foi parar na Justiça: dois médicos foram até seu quarto para assedia-la. Nesta semana, o resultado de um exame de DNA comprovou que o tio da menina, apontado por ela como o abusador, cometeu, de fato, o crime.

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, uma das lideranças fervorosas contra o aborto, comentou nesta quinta-feira o caso da menina em um vídeo ao vivo nas redes sociais. Ao lado de Bolsonaro, a ministra disse que “temos que enfrentar a erotização de crianças”. E assegurou que não mudaria as regras para o aborto legal. “Não, o Governo Bolsonaro não vai apresentar nenhuma proposta para mudar a legislação atual de aborto. Isso é um assunto do Congresso Nacional”, afirmou.

“Descalabro”

O direito ao aborto é um dos alvos mais cobiçados de políticos e militantes conservadores. No ano passado, o vereador Fernando Holiday (DEM), do Movimento Brasil Livre (MBL), tentou emplacar um projeto de lei na Câmara Municipal de São Paulo engrossando essa ofensiva. Inspirado no endurecimento das regras contra o aborto que vem ocorrendo nos Estados Unidos, Holiday apresentou projeto que determinava várias obrigações às mulheres para a realização do procedimento. Sobretudo às vítimas de estupro. De tão opressivo, o projeto foi alvo de críticas até mesmo da direita, e o vereador retirou a proposta e prometeu alterações no texto.

A portaria publicada pelo Ministério da Saúde também causou reação imediata. Deputadas do PSOL, PCdoB, PT e PSB protocolaram na Câmara nesta sexta-feira um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para sustar os efeitos da portaria. “Vamos reagir a esse descalabro apresentando medidas legislativas e jurídicas para sustar os efeitos nefastos e cruéis dessa portaria, que é uma violência inominável contra as mulheres e meninas vítimas de estupro no Brasil”, publicou no Twitter a deputada Erika Kokay (PT-DF), uma das autoras do projeto.

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