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‘Em nome de Deus’ destaca o trunfo jornalístico que desconstruiu um mito e revelou um predador sexual

Série sobre João de Deus revela como foi a investigação que levou à prisão e condenação do homem que, ao longo de cinco décadas, tornou-se mundialmente conhecido por suas operações espirituais

João de Deus é escoltado por simpatizantes após denúncias, em Abadiânia, em 12 de dezembro de 2018.
João de Deus é escoltado por simpatizantes após denúncias, em Abadiânia, em 12 de dezembro de 2018.

De um lado, curas milagrosas, operações espirituais e a amizade e a admiração de celebridades e poderosos do nível de Bill Clinton, Oprah Winfrey, Luís Inácio Lula da Silva e Xuxa. De outro, centenas de acusações de abuso sexual, uma organização criminosa, um passado de homicídios. Essa é a história (uma parte) de João de Deus, médium, curandeiro e cirurgião espiritual brasileiro que foi do céu ao inferno depois de cativar milhares de pessoas em todo o mundo por cinco décadas com sua fama de milagres, enquanto abusava de mulheres e meninas aonde quer que fosse. As primeiras denuncias se tornaram públicas em 7 de dezembro de 2018, no talk show Conversa com Bial, conduzido pelo jornalista Pedro Bial, um dos repórteres e apresentadores de mais credibilidade no Brasil, que apresentou as histórias de cinco vítimas. Uma semana depois, a Justiça prendia João de Deus ―condenado a 40 anos de prisão―, depois que mais de 300 mulheres o acusaram formalmente.

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Os mais de 18 meses de investigação jornalística que resultaram nas denúncias e na prisão do médium agora são apresentados como uma série documental de seis capítulos, Em Nome de Deus, que a Globo ―a principal empresa de comunicação da América Latina― também estreia para o público internacional na plataforma GloboPlay. Além dos bastidores da reportagem, a série expõe outras facetas da atividade criminosa de João de Deus, como sua suposta relação com casos de tráfico de drogas e homicídios no passado. O mais contundente, no entanto, é a reunião inédita das primeiras mulheres que revelaram os abusos na televisão. De diferentes partes do Brasil ―e também da Holanda, como a coreógrafa Zahira Mous―, as vítimas se confraternizam e contam detalhes da violência que sofreram e que algumas ocultaram por mais de 20 anos.

“Em Nome de Deus é a história das mulheres e sua coragem para reagir. Mais do que resistir, agir, com base no sofrimento, na humilhação e no massacre que sofreram. É um documentário sobre a voz das mulheres”, diz Pedro Bial a EL PAÍS. O jornalista acredita que as denúncias contra um homem tão poderoso e influente no Brasil não teriam sido possíveis sem algo como o Movimento #MeToo”. “Desde a coragem das mulheres para denunciar até a consciência social, em um sentido mais amplo, que influem na decisão de um delegado, um juiz, um promotor. É um zeitgeist “, diz. Um exemplo disso é o fato de que pelo menos duas mulheres, uma nos Estados Unidos ―para onde João de Deus viajava para dar palestras e dar consultas espirituais― e a outra em Abadiânia (Goías), onde ficava o centro religioso criado por ele, já haviam denunciado o médium por abuso sexual, mas as investigações não foram adiante. No caso da jovem brasileira, que fez a denúncia em 2014, o promotor considerou que houve um “ato imoral”, mas que isso não era suficiente para incriminá-lo.

“Tudo o que nos chegava e que investigávamos tinha, de fato, algum tipo de queixa formalizada na Justiça. Mas João de Deus tinha um sólido sistema de proteção e de influências que o blindavam quando esses casos chegavam ao território judicial”, conta Pedro Bial. O jornalista acrescenta que, após a estreia da série no Brasil, surgiram novas denuncias contra o médium. “Também é verdade que, por se tratar de um sujeito tão excêntrico e místico, chegaram até nós relatos de coisas sobrenaturais, até histórias de tráfico de bebês, coisas que eram excessivas e nas quais não encontramos um fundo de verdade”, diz Bial.

João de Deus transformou Abadiânia, uma cidade com pouco mais de 17.000 habitantes, no cêntrico Estado de Goiás, na sede de seu império espiritual e financeiro. Naquele pedaço do Brasil, que possui muito de qualquer das milhares de cidades esquecidas do interior do país, ele construiu a Casa Don Inácio de Loyola, onde atendia milhares de pessoas por dia para realizar cirurgias espirituais ―muitas vezes com cortes sem anestesia― e se vangloriava de restaurar a fala a quem não podia falar e os movimentos a quem não podia andar. Oprah Winfrey, a sensação da televisão norte-americana, testemunhou fatos como esses em 2012, quando visitou a Casa. “Lágrimas de gratidão começaram a brotar de mim. Tive uma incrível sensação de paz”, comentou na ocasião.

Nem ela nem os políticos e artistas famosos que se tornaram amigos do médium desconfiavam que era precisamente em uma sala daquele centro espiritual onde João de Deus cometia grande parte de seus abusos, seguindo, de acordo com o relato de suas vítimas, um mesmo modus operandi. As mulheres eram instruídas a procurá-lo em busca de uma cura espiritual em seu escritório, onde ele as trancava, as virava de costas para ele ou as sentava em uma cadeira, com os olhos fechados, e praticava os abusos.

O poder do documentário

Agora, esses fatos são contados sob a perspectiva não só das vítimas, mas também daqueles que trabalhavam diretamente com João de Deus e, sobretudo, da equipe jornalística que os trouxe à luz. Tudo começou quando o próprio Pedro Bial solicitou uma entrevista com o médium, que disse que a concederia sob uma condição: o jornalista deveria visitar seu centro em Abadiânia. Durante a preparação do encontro, Bial mudou de ideia. “Vi um documentário em que ele dizia que não pedia nada a quem fosse a Abadiânia, nada além de fé. E a verdade é que eu, em nível pessoal, não trabalho com essa moeda”, conta o jornalista. Em nível profissional, lhe parecia que sua mera presença como convidado, “na infame categoria de celebridade”, representaria um respaldo ao que quer que acontecesse ali. “Não seria o mesmo que ir como repórter, quando poderia conversar com as pessoas sem receios e buscar relatos dissonantes do oficial”, explica. Então, a entrevista nunca aconteceu. E as denúncias começaram a chegar à repórter (e roteirista de Em Nome de Deus) Camila Appel, que trabalha na equipe de Bial.

Quanto mais investigavam, mais se davam conta de que haviam contado apenas uma parte de uma história muito longa, que avança por diferentes regiões do Brasil, Holanda, Austrália e Estados Unidos. Foi assim que surgiu a ideia de converter a investigação jornalística em uma série documental, com o êxito de conseguir construir bons arcos de história curtos, resolvidos em cada episódio, e um arco longo que percorre toda a série. “Esse formato oferece novas possibilidades para o ofício do jornalismo. Por sua intimidade com a cinematografia, o documentário permite ao espectador não só informar-se, mas também viver uma experiência. Permite que se coloque no lugar de outra pessoa, algo tão em falta no mundo contemporâneo”, comenta Bial.

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