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A misoginia do Governo Bolsonaro vai parar na Justiça

Procuradores de São Paulo processam a União por falas e ações "misóginas" de Bolsonaro e ministros contra as mulheres e pedem indenização por “abuso de liberdade de expressão”

Ato "Ele Não" em protesto contra a candidatura de Jair Bolsonaro, em setembro de 2018.
Ato "Ele Não" em protesto contra a candidatura de Jair Bolsonaro, em setembro de 2018.DANIELA MOURA
Marina Rossi

“O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer”. A tosca metáfora à qual o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) recorreu para falar da Amazônia em julho de 2019, faz parte de uma coleção de declarações machistas feitas pelo presidente e por parte de seus ministros contra as mulheres neste mais de um ano e meio de Governo. A série de ataques foi levantada pelo Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP), e virou o cerne de um processo por danos morais movido pela Procuradoria contra a União. De acordo com a ação civil pública, que será julgada por um juiz federal do Estado, as declarações do presidente, classificadas de “misóginas” e como “abuso de liberdade de expressão, “profanam os fundamentos e objetivos fundamentais da Constituição”.

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O processo (leia aqui na íntegra), de autoria dos procuradores Lisiane Braecher e Pedro Antonio de Oliveira Machado, leva às instâncias jurídicas aquilo que o feminismo já sabia. Não é de hoje que o presidente ataca deliberadamente as mulheres e recorre, sempre que possível, a artifícios de cunho machista e gosto duvidoso para falar sobre os mais variados assuntos. Da defesa da Amazônia, ao ataque a jornalistas mulheres e a outras minorias. “O Brasil não pode ser o paraíso do turismo gay. Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora não pode ficar conhecido como o paraíso do mundo gay aqui dentro”, disse Bolsonaro, em abril do ano passado, a jornalistas. A frase, além de uma violência às mulheres e um ataque homofóbico, despreza uma luta histórica para tirar do Brasil o rótulo de paraíso do turismo sexual, e, pior ainda, do turismo sexual infantil.

No alvo do processo estão também declarações machistas feitas por ministros, como a titular da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, o ministro da Economia, Paulo Guedes, o ex-titular da pasta da Justiça, Sergio Moro, e o ministro das Relações Internacionais, Ernesto Araújo, que disse: “Hoje um homem olhar para uma mulher já é tentativa de estupro”, dita em junho do ano passado. Todas as frases estão documentadas na ação.

O procurador da República Pedro Antonio de Oliveira Machado explica que a Procuradoria vinha coletando material há algum tempo para mover o processo, mas foi quando o ataque saiu do plano das declarações e se concretizou em ações públicas que o processo ganhou força. “A gente já vinha fazendo essa garimpagem e o trabalho culminou com a revogação da nota técnica do Ministério da Saúde sobre a política de atendimento às vítimas de violência doméstica e sexual”, afirma. “Isso nos chamou muito a atenção, porque é mais do que uma declaração”.

Em junho, o ministro interino da Saúde Eduardo Pazuello exonerou dois funcionários de carreira da pasta depois que eles assinaram uma nota técnica sobre o atendimento à saúde da mulher durante a pandemia. A nota recomendava a orientação e acesso a métodos contraceptivos, falava em reduzir a gravidez não planejada e sobre a violência contra a mulher. O documento tratava da interrupção da gravidez nos termos previstos pela legislação brasileira, mas o presidente encarou como uma proposta de legalização do aborto e disse que pessoas de dentro do Ministério queriam derrubá-lo. “No que depender de mim não terá aborto”, disse Bolsonaro na época.

Machado explica que essas ações do Governo vão na contramão dos compromissos assumidos pelo Brasil no plano nacional e internacional sobre a diminuição no quadro de desigualdades entre homens e mulheres. “Essas declarações e ações vão contra o marco legal existente e que precisa ser reconhecido. Se um presidente quiser fazer de outra forma, ele até pode procurar outro país que adote essas normas exóticas”, diz o procurador. “Mas aqui já há compromissos assumidos e, mesmo que ele não concorde, precisam ser cumpridos, como a própria Constituição”. Para ele, o processo movido serve para alertar que o que vem sendo feito por parte da gestão Bolsonaro contra as mulheres “não é normal”. “Isso está fora das conquistas que tivemos dentro dos direitos e igualdades”.

Por isso, o processo pede que que a Justiça Federal determine o imediato bloqueio de “pelo menos” 10 milhões de reais, dentro do orçamento do Governo para publicidade, para ser usado na promoção de ações publicitárias para a conscientização do público. Com veiculação pelo “período mínimo de um ano”, os conteúdos deverão expor os dados sobre a desigualdade de gênero no Brasil e a vulnerabilidade das mulheres à violência. Na ação, que ainda precisa ser julgada, os procuradores recomendam que as peças publicitárias devem ser feitas sob a orientação de entidades que defendem os direitos das mulheres.

Por fim, o MPF quer que a União seja condenada ao pagamento de 5 milhões de reais ao Fundo de Direitos Difusos, a título de “indenização por danos sociais e morais coletivos”. O procurador Pedro Antonio de Oliveira lembra que, mais do que valores indenizatórios, o processo é também para servir de alerta. “Nos parece que há um pensamento conservador sobre a questão da igualdade de gênero, de que esse tipo de declaração não traz consequências”, afirma. “E a ação é também para demonstrar que sim, há consequências”.

“Revanchismo”

Para Claudia Luna, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB de São Paulo, as políticas públicas brasileiras hoje vão contra as mulheres. “Hoje, o Estado brasileiro é um Estado que odeia as mulheres. É um Estado misógino. É um Estado que reduz as políticas públicas para as mulheres”, afirma. “Isso é configurador de graves violações aos direitos das mulheres”.

De acordo com ela, a postura do presidente e de seus ministros é parte de uma estratégia de redução de direitos já conquistados. “Desde o início deste Governo há um retrocesso no que diz respeito às garantias de políticas públicas voltadas às mulheres”, diz. “Bolsonaro tem uma atitude revanchista, ele sabe exatamente a quem vai dirigir seus ataques. É por isso que estamos com um retrocesso de 130 anos de direitos”.

Maioria (52%) entre os eleitores em 2018, as mulheres lideraram o maior movimento contra Jair Bolsonaro durante aquele pleito. Diante de ameaças que o então candidato representava às minorias, marcharam em todo o país sob o mote do “Ele não”, quando faltava apenas uma semana para o primeiro turno. Se na época elas também representavam a maioria dos eleitores que o rejeitavam, segundo todas as pesquisas eleitorais, hoje elas seguem na mesma posição. O levantamento mais recente, realizado entre 20 e 22 de julho pelo PoderData —vinculado ao site Poder 360― mostra que são as mulheres (57%) o grupo que mais defende que Bolsonaro deixe o Governo.

Se o movimento feminista não teve força de barrar Bolsonaro rumo ao Planalto, em outros embates, colheu vitórias. Foram elas que se levantaram, em 2015, contra o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB), no que ficou conhecido como a Primavera feminista. Hoje preso em regime domiciliar pela Operação Lava Jato, Cunha representava naquele momento uma ameaça aos direitos conquistados pelas mulheres, colocando em votação projetos de lei de sua própria autoria, como o que dificulta o atendimento a vítimas de estupro, limitando, por exemplo, o acesso à pílula do dia seguinte. Nenhum outro segmento da sociedade mobilizou tantas pessoas nas ruas como as mulheres fizeram naquela época e o projeto acabou engavetado.

As chances de sucesso da ação da Procuradoria de São Paulo são difíceis de prever. Bolsonaro já foi condenado a pagar indenização em ação por danos morais por ter dito à então colega deputada Maria do Rosário (PT-RS), em 2014, que ela “feia” e, por isso, não merecia ser estuprada. A condenação foi mantida pelo Supremo Tribunal Federal no ano passado. O mesmo Supremo, no entanto, se recusou a julgar o então candidato presidencial quando ele denunciado pela Procuradoria-Geral da República por crime de racismo em 2018 por declarações durante a campanha.


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