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Em menos de 6 horas, delegado conclui que policial que matou jovem negro desarmado agiu em legítima defesa

PMs alegam que atiraram em Rogério Ferreira da Silva Júnior porque tiveram a impressão de que ele iria “sacar arma”; vítima fez 19 anos no dia de sua morte

O momento em que Rogério Ferreira da Silva Júnior é abordado.
O momento em que Rogério Ferreira da Silva Júnior é abordado.Reprodução
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A Polícia Civil de São Paulo considera que os policiais militares agiram em legítima defesa ao atirar e matar Rogério Ferreira da Silva Júnior, no domingo (9/8), no Parque Bristol, na zona sul da cidade de São Paulo. O jovem negro estava desarmado e levou um tiro.

Segundo os PMs Guilherme Tadeu Figueiredo Giacomelli e Renan Conceição Fernandes Branco, eles patrulhavam a região quando viram Rogério de moto. Eles afirmam que deram sinal de parada, mas o jovem negro, que fazia 19 anos naquele dia, teria fugido.

Ainda de acordo com a versão dada pelos policiais ao DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, responsável por investigar o caso, Rogério fez menção de sacar uma arma durante a perseguição.

Giacomelli e Branco identificaram o ato de colocar a mão na cintura como um risco “iminente de agressão”. O PM Giacomelli, então, decidiu atirar. Deu um único tiro, que atingiu Rogério no lado direito das costas e saiu abaixo da axila esquerda.

Segundo os PMs, o jovem dirigiu por mais 50 metros e, quando parou a moto, caiu no chão e tentou se proteger no muro. Estas imagens foram captadas por câmeras de segurança e têm “indício de execução”, segundo o advogado Ariel de Castro, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana).

Os PMs dizem não ter atirado em Rogério no momento em que ele para a moto, como registrado em vídeo. Quando o revistaram, identificaram que não havia nenhuma arma.

A versão oficial é de que pediram imediatamente socorro, mas moradores da região viram a cena e um deles colocou o jovem negro no carro e o levou ao Hospital Sesi, também no Parque Bristol. Rogério não resistiu aos ferimentos.

A versão é considerada verídica para o delegado Ricardo Travassos da Silva, do DHPP, responsável pela apuração do crime. Segundo ele, a explicação de Giacomelli e Branco para a morte condiz com legítima defesa.

Travassos argumenta no Boletim de Ocorrência que o disparo que matou Rogério é correto “diante de uma possível agressão por arma de fogo”. Ainda destaca o fato de o motociclista ter incorrido “em várias infrações criminais” ao fugir da PM como forma de sustentar seu argumento.

Rogério foi morto durante ação da PM no dia em que completou 19 anos
Rogério foi morto durante ação da PM no dia em que completou 19 anosArquivo pessoal

O documento da Polícia Civil tem sete enquadramentos para o caso: homicídio simples, resistência, desobediência, dano qualificado, dirigir sem permissão ou habilitação, trafegar em velocidade incompatível, permitir direção do veículo automotor a pessoa não habilitada.

O delegado ainda cita o coronel Vinícius, identificado no documento como comandante do 46º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano como outra autoridade a considerar a legítima defesa neste caso. O coronel comanda o batalhão onde os PMs Giacomelli e Branco trabalham, sendo responsável pelo inquérito policial militar do crime.

Depois do socorro, os PMs alegam terem sido alvo de protesto. As pessoas, revoltadas com a morte de Rogério, teriam jogado pedra na direção das motos policiais, danificando o vidro de uma delas.

Tentativa de livrar a polícia

O advogado criminalista Flavio Roberto Campos, integrante da EduCafro, considera errado o enquadramento em legítima defesa. Para ele, a competência de fazer tal definição é do juiz ou do júri e não do delegado.

“O delegado não está fazendo um juízo de Polícia Judiciária, está fazendo um de juiz. Está avaliando até o dolo do cara em uma situação subjetiva”, avalia. “É um exagero de interpretação. Fica nítido o viés da condução dessa investigação para isentar a SSP de responsabilidade”, argumenta.

Campos explica que a legítima defesa pode ser enquadrada, mas em casos específicos. Exemplifica quando o policial está diante de uma pessoa com uma arma de brinquedo e a mata. Neste caso, seria legítima defesa por não saber se tratar de uma simulação de arma de fogo.

“Como o delegado coloca em inquérito? Você tem uma pessoa baleada pelas costas, desarmada, ponto. Se o réu vai usar uma defesa dessas, que use no júri. Vai absolver o cara no começo?”, questiona.

A advogada Débora Roque, integrante da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, que acompanha o caso, considera que a versão da PM é uma justificativa para “atuação violenta da polícia”.

“O que as imagens mostram é mais uma das várias comprovações do despreparo de uma polícia militar que atua como se estivesse em uma zona de guerra, e a população, em sua grande maioria jovens, negros e moradores de bairros periféricos, acabam por ser vítimas dessas atuações”, sustenta a defensora.

Ela cobra que a investigação não acabe em impunidade, o que, para Roque, seria matar Rogério duas vezes. “Independente da versão policial contada no boletim, há uma certeza, Rogério não estava armado e o policial não precisava ter atirado”.

Uma nova manifestação estava agendada por moradores para às 18h desta segunda-feira (10/8), em frente ao CEU Bristol, unidade escolar vizinha ao local em que Rogério foi atingido e caiu antes de morrer.

Outro lado

A Ponte solicitou posicionamento da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, liderada pelo general João Camilo Pires de Campos neste Governo de João Doria (PSDB), sobre o registro da ocorrência.

Em nota, a pasta informa que o caso está sendo investigado e todas as circunstâncias estão sendo apuradas. “Os policiais envolvidos na ocorrência estão sendo ouvidos pelo Plantão de Polícia Judiciária Militar e foram afastados do policiamento operacional. Policiais do DHPP estão ouvindo testemunhas e familiares do rapaz. A Corregedoria da PM também foi acionada e acompanha as investigações”.

Solicitamos entrevista com o delegado Ricardo Travassos da Silva e com os policiais militares Guilherme Tadeu Figueiredo Giacomelli e Renan Conceição Fernandes Branco e aguardamos uma resposta.

As perguntas enviadas estão abaixo.

Para o delegado:

Para a SSP e a PM, algumas das questões ainda não respondidas com a nota:

Reportagem originalmente publicada no site da Ponte Jornalismo em 10 de agosto de 2020.

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