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Pandemia de coronavírus | O Brasil em luto
Coluna
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O relicário de uma pandemia

Não pode haver retorno a um “novo normal”, pois a naturalização do normal é um apagamento de injustiças, tais como a violência contra as mulheres na casa e o racismo estrutural

Cruzes e balões espalhados pela praia de Copacabana neste sábado, no Rio de Janeiro, lembram as mais de 100.000 mortes pela covid-19 no Brasil.
Cruzes e balões espalhados pela praia de Copacabana neste sábado, no Rio de Janeiro, lembram as mais de 100.000 mortes pela covid-19 no Brasil.Antonio Lacerda (EFE)
Debora Diniz

A pandemia é um escândalo. Quem foi o pecador que pôs essa pedra de tropeço em nossas vidas? Não foi ninguém. Um vírus é um ninguém. Morremos em bandos, somos 100.000. Os números escandalizam, mas também distanciam o soluço dos que choram. Os 100.000 fazem a saudade estar em cada esquina, em quase toda gente conhecida alguém chora seu morto sem despedida. O desconcerto das vidas arrebatadas nos faz sentir falta dos ritos funerários: mesmo macabros, os ritos eram momentos de cultivo da memória sobre o bem querer ao morto. Não há tempo para a melancolia que antecede o luto, pois o vírus tem pressa, e os humanos são descuidados em levá-lo a sério.

Mente quem diz que somos todos igualmente vulneráveis ao vírus. Só na abstração da imunização dos laboratórios somos matéria idêntica. Na realidade das imunizações dos privilégios, nossos corpos são muito diferentes —alguns se lançam às ruas para limpar calçadas, outros para trabalhar em farmácias ou supermercados, outros a entregarem comidas e remédios, e muitos para cuidar de gente doente nos hospitais, casas ou asilos. Esses são corpos essenciais à pandemia, por isso mesmo, em maior risco de adoecer e, tristemente, de morrer. Sem nada poder fazer para atenuar os efeitos do escândalo na vida de milhares, tranquei-me à casa. Sobrevivo ao mandato da distância social como uma ordem de isolamento social: se nada posso fazer pelos outros, ao menos que deixe as ruas para os que precisam se mover para cuidar de todos nós.

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Goldfish bowl-like acrylic screens used as part of new social distancing measures and prevention of infection against the coronavirus disease (COVID-19), where male customers sit inside the screens to be entertained by female staff, are installed at Jazz Lounge Encounter, a form of a night club for seeking encounters, at Ginza district in Tokyo, Japan August 6, 2020.  REUTERS/Issei Kato
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BELO HORIZONTE, MG, 05.08.2020 – Brasil se aproxima de 100 mil mortes por Covid-19. Na foto: A recepcionista Maíra Diniz Câmpara, que perdeu o pai Paulo Roberto Dias Câmpara, de 75 anos, e sua filha, Samira Diniz Câmpara, 40, vítimas de Covid-19. Maíra segura celular com fotos do pai e da irmã. (Foto: Flávio Tavares/El País)
“Quanto tempo perdemos com mágoas do passado. Pai, você se foi sem saber o tanto que eu te amava”
Clarinda Maria da Conceição, uma das 100.000 vítimas fatais da covid-19 no Brasil.
“Mãe, amor e saudade brotam em cada um que teve a sorte de conviver com a senhora”

Da dessencialidade de minha existência na pandemia, imaginei formas de cuidado. Passei a ensinar pelas redes, a conversar com gente desconhecida que só a literatura ou a etnografia me apresentaria. Essas novas vozes me ensinaram como outros sobrevivem à anormalidade de regras injustas para a vida. Não pode haver retorno a um “novo normal”, pois a naturalização do normal é um apagamento de injustiças, tais como a violência contra as mulheres na casa, o racismo estrutural ou o genocídio dos povos indígenas. Vivemos em um momento de desalento, real e alegórico. Se nossos corpos não sucumbirem ao desalento do vírus nos pulmões, nossos corpos devem desalentar-se por inteiro para arder a ferida pela sobrevivência. Por isso, sustento que há esperança no mundo pós-pandemia.

De onde animo minha esperança? Da emergência de uma solidariedade feminista. A solidariedade parte do desalento do luto e se move para a criação de novas formas de coexistência no comum. O paradigma da imunidade neoliberal do indivíduo não nos salvará como coletividade: a pandemia nos mostrou como somos interdependentes e, tão importante quanto, como o cuidado é uma atividade relacional que nos define como humanos que desejam a transformação. A experiência física do desalento, vivido pelos corpos desde as particularidades de suas existências no tempo e no espaço do falso normal, é o que nos moverá para o giro de transformação.

Todos os dias ensaio sentidos do que pode ser uma solidariedade feminista que assuma o cuidado e a interdependência como conectores para nossas lutas por direitos. Com o artista plástico, Ramon Navarro, mantenho um álbum no Instagram @reliquia.rum, onde contamos histórias de mulheres que morreram pela pandemia. Todos os dias contamos uma história de uma mulher anônima, feita multidão pelos números do escândalo. Já foram mais de 150 mulheres, um calendário diário desde o dia em que d. Cleonice Gonçalves, considerada a primeira mulher a morrer de covid-19 no Rio de Janeiro estampou as notícias. Era uma senhora sem nome ou rosto: “só” a morte de uma empregada doméstica.

A desordem do presente reclama formas de imaginação para suportarmos o luto. Foi assim que passamos a contar biografias verdadeiras, escavadas das notícias, porém com colagens de mulheres de outro tempo e história que não o nosso. Formamos uma comunidade de luto, em que o luto privado se converte em luto coletivo para a memória de um escândalo do qual já somos cem mil mortos. Desde a janela enviesada para a dor dos outros, todos os dias leio e ouço dores e acalento soluços de filhos, netos, pais e mães que perderam gente fora de hora. Desde o isolamento do mundo, me conecto à descoberta de outras vozes e sobrevivências. É, desse balanço, entre o luto e a resistência que imagino um mundo pós-pandemia com espaço político para a solidariedade feminista. Não podemos sair dos meses de desalento com a mesma tranquilidade que o antigo normal alentava nossos privilégios.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown

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