Pandemia de coronavírus | O Brasil em luto
Tribuna
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“Quanto tempo perdemos com mágoas do passado. Pai, você se foi sem saber o tanto que eu te amava”

Maíra Diniz Câmpara escreve cartas de despedida para o pai e a irmã, vítimas da covid-19 no mês de junho, em Minas Gerais

A recepcionista Maíra Diniz Câmpara segura celular com fotos do pai e da irmã, vítimas da covid-19
A recepcionista Maíra Diniz Câmpara segura celular com fotos do pai e da irmã, vítimas da covid-19FLAVIO TAVARES (Foto: Flávio Tavares/El País)
Maíra Diniz Câmpara
Belo Horizonte -

Paulo Roberto Dias Câmpara era um amante da música. Adorava tocar instrumentos de corda, como violão e cavaquinho, mas também se aventurava no piano, teclado e no saxofone. Aprendeu tudo sozinho e se apresentou em muitos palcos. Era através da música que conseguia expressar suas emoções. Falava três idiomas estrangeiros: inglês, espanhol e francês. Nos últimos tempos, para complementar a renda da família, começou a vender picolé em um carrinho que empurrava no Bairro Santa Cruz, na Região Nordeste de Belo Horizonte. Pai de três filhos e casado com Vera Lúcia, ele gostava de jogar buraco aos domingos com a família.

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No início do mês de junho deste ano, em meio à pandemia do coronavírus, apresentou um quadro de pneumonia e foi internado. Em um primeiro momento, o teste não acusou a covid-19, que seria confirmada dias depois. A filha Samira Câmpara, de 40 anos, acompanhou Paulo Roberto no hospital durante os primeiros dia de internação. Poucos tempo depois, ela começou a sentir os sintomas do coronavírus e também foi levada para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Pai e filha faleceram vítimas do coronavírus em um intervalo de quatro dias. Não puderam se despedir. Paulo Roberto morreu no dia 13 de junho, aos 75 anos. Samira, que era cabeleireira, faleceu no dia 17, deixando o filho Bernardo, de 11 anos. “Samira era uma pessoa geniosa, ficava brava facilmente, mas ao mesmo tempo era uma pessoa extremamente caridosa. Tinha um um coração muito bom, sempre disposta a ajudar. Se tivesse oportunidade, ela diria estar feliz por ter dado a vida dela pelo pai”, diz a irmã, Maíra Diniz Câmpara, de 38 anos, em depoimento à repórter Heloísa Mendonça. Abaixo, as cartas de Maíra para o pai e a irmã.

Carta para Paulo Roberto

“Pai,

Te escrevo essa carta para dizer o tanto que você tem feito falta...O pior é que tenho que admitir que você estava certo, íamos mesmo sentir sua falta. Falta da rabugice, das brincadeiras, das risadas, do tanto que nos servia, kkkk. Lembro das paródias de críticas que fazia. Gostava tanto de música, que até para expor suas frustrações era por meio dela. Lembro de suas habilidades, e como você tinha habilidades. Tocava um instrumento de cordas como ninguém. Sinto não poder te falar tudo isso pessoalmente. Aliás, quanto tempo perdemos com mágoas e ressentimentos do passado. Você se foi sem ao menos saber o tanto que eu te amava, mesmo com seus defeitos.

Nosso relacionamento, às vezes, foi bastante conturbado. Por isso, ainda imatura, falei coisas que me arrependi. Quando adquiri maturidade, sobretudo espiritual, aprendi a te honrar com a certeza de que o filho que honra seus pais seria bem aventurado. Escolhi por Deus te honrar e cuidar de você. Me sinto privilegiada de ter podido cuidar de você nos últimos dias de vida, mesmo que por causa das circunstâncias da vida tenha adquirido a covid. Não me arrependo e tenho certeza de que, se a Samira tivesse oportunidade de lhe falar, também diria estar feliz por ter dado sua a vida por você. Meu peito está apertado de saudade de você, Polim...meu papito querido. Ah, vou sentir falta do nosso buraquinho de domingo e da comidinha gostosa que fazia ❤.”

Carta para Samira

“Estamos sentindo sua falta. Quando olhamos o Bê, vemos um pedacinho seu na terra que ficou para nós”

“Mana,

Está um pouco tarde, eu sei, mas te escrevo essa carta com o coração partido de saudades para dizer que te amo... Sei que morreu acreditando o contrário, talvez seja porque não lutei para que acreditasse que era real o meu amor por você. Sabe, na realidade, tinha você como espelho. Você era a melhor cabeleireira que conheci. Não acreditei quando vi você ser homenageada pela sua profissão na TV. Você se sentia frustrada, achando que ninguém te amava, e agora ficaria surpresa com tanta manifestação de carinho. Você se foi e agora sinto um vazio. Me pego lembrando da nossa infância, sempre juntas, e lamento a distância ocasionada pelas circunstâncias. Me perdoe por ter sido ausente, por ter me afastado às vezes...

Sempre te amei. Sempre busquei crescer por nossa família e você estava incluída. Quando trabalhávamos juntas, sempre soube que uma era a complementação da outra, com os dons dados por Deus. Não te via como inimiga nem tampouco como concorrente. Sempre torci pelo seu sucesso e vibrei com suas conquistas, ainda que às vezes de longe. Sei que você era geniosa às vezes, mas isso não foi impedimento para eu te admirar. Estamos sentindo sua falta e todas as vezes que olhamos para o Bernardo te vemos...Como ele está parecido com você. Um pedacinho de você na terra que ficou pra nós.

Sinto não ter podido falar isso ainda em vida, isso me corrói. Mas sei que Deus está no controle de tudo e, por isso, estaremos aqui cuidado do Bê por você ❤.”

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