Pandemia de coronavírus | O Brasil em luto
Tribuna
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“Lembro o quão majestosa você foi, um espírito travesso que gostava de viver de forma intensa”

Pedro Ivo de Oliveira escreve uma carta para a prima Bianca Galvão de Oliveira, de 18 anos, uma das vítimas da covid-19 no Brasil

Pôr do sol em uma praia de New Brighton. Bianca adorava a praia, como lembra o primo Pedro Ivo na carta em sua homenagem.
Pôr do sol em uma praia de New Brighton. Bianca adorava a praia, como lembra o primo Pedro Ivo na carta em sua homenagem.PHIL NOBLE (Reuters)
Pedro Ivo de Oliveira
Fortaleza -

Bianca Galvão de Oliveira era uma jovem sonhadora, que, nas palavras de seus familiares, gostava de viver intensamente. Nascida em Fortaleza (CE), o banho de mar era um de seus amores. Além do seu bom humor —que rendia “momentos hilários” aos amigos e familiares—, Bianca foi uma “lutadora”, como diz seu primo Pedro Ivo. Diagnosticada com leucemia, Bianca lutou, sobretudo, contra o tempo. E, em meio ao tratamento que a levou a São Paulo, nos últimos anos —os mais frágeis de sua vida—, a covid-19 chegou. Aos 18 anos, Bianca tornou-se uma das 100.000 vidas perdidas para a doença no Brasil. Em sua homenagem, o primo Pedro, em depoimento a Joana Oliveira, lhe dedica a seguinte carta:

Bianca Galvão de Oliveira (última à direita da foto), ao lado do primo Pedro Ivo e de outros primos e amigas. Esta era sua foto favorita.
Bianca Galvão de Oliveira (última à direita da foto), ao lado do primo Pedro Ivo e de outros primos e amigas. Esta era sua foto favorita.Arquivo pessoal

“Querida Bianca,

Chegamos ao terceiro mês sem a sua presença, sem suas risadas e sem nenhuma mensagem ou sinal para nos dizer que você está bem. Não sei como começar a descrever esse aperto no peito que ficou após a sua partida, e como nunca poderemos estar inteiros e intactos, porque você levou um pouco de todos os nós.

Pergunto-me como você está e se está se sentindo bem. Por mais que eu queira conversar com você ― provavelmente você consegue me escutar ― a comunicação não é recíproca, e fico a esperar uma resposta qualquer. Fico me indagando e pensando mais além, como poderíamos estar daqui a uns dez anos, por exemplo, e como estaríamos e nos relacionaríamos, se brigaríamos, assistiríamos a um filme, dançaríamos alguma música... Mas não sei ao certo como posso pensar em futuro para todos nós se você não está mais no nosso presente.

Esses têm sido dias difíceis, em que cada um da família tenta sobreviver ao luto e ao vazio deixado em nós. Mas os dias, ao entardecer, ficaram mais iluminados e cheios de cores e à noite, a lua sempre parece simpática e graciosa. Talvez seja você fazendo arte e mostrando que está tudo bem.

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Aproveito para falar o quão majestosa você foi, sempre com um espírito travesso que gostava de viver, de forma intensa, e que sempre soube aproveitar o tempo que esteve aqui. Nesses seus 18 anos, você pôde crescer como criança, passando pela turbulenta adolescência e lapidando a vida adulta, mas nos últimos anos, você saiu de uma menina delicada (nem tanto) para uma mulher guerreira, lutou contra a leucemia, tendo alguns dias difíceis e outros satisfatórios, mas eliminando cada impasse um a um, de cabeça erguida e indo à frente.

Infelizmente, você não está aqui para contar essa história, e cabia a mim junto à família escrever algo que chegasse à altura, com palavras, da magnífica pessoa que se tornou. Você trouxe muita luz e esperança, nos ensinou a viver cada dia como único e sempre em seu próprio tempo. E foi justamente o tempo que acabou sendo nosso inimigo mortal. Por falta dele, não foi possível ver mais os seus sorrisos, ouvir sua risada, e nem sequer ouvir alguns estresses seus.

Às vezes, me pego pensando como deve estar aí. Você adorava a praia, e como deve ser não sentir a areia cobrindo os pés, a água salgada que molha a sua perna e a maresia se percorria seu corpo e seu esplêndido cabelo.

Sempre que posso, disponibilizo meu tempo indo ver sua mãe e seu padrasto, converso horas sem parar, e sempre que vejo o pequeno Levi, consigo imaginar ele em seus braços, e no momento em que ele começa a chorar, você o devolvendo para a sua mãe. Infelizmente, ele não poderá ficar no seu colo e nem ter sua presença constante, mas ele sempre saberá quem foi essa mulher que sempre quis fazê-lo feliz, e que irmã você seria, amando e mimando ele sempre que pudesse.

Tentei ao máximo me expressar e falar o quão importante você foi e como gostava de viver, e quão inoportuna foi essa doença que chegou no momento mais frágil de sua vida e a levou no meio do tratamento e nem sequer nos deixou uma saudosa despedida. Mas espero que esteja bem, pois nós estamos bem, nos cuidando, tomando medidas preventivas sempre, e sabendo que, de alguma forma, você vai cuidar da gente, como sempre fez.

Bia, as amarras que te prendiam no mundo tiveram seus nós desatados e agora você flutua para mais longe, para além do céu, onde não há mais limitações que possam fazê-la parar.

Ainda penso se pude ser o primo mais presente em sua vida, e que talvez eu tivesse sido melhor, mas eu tenho tantas lembranças com você que me fazem afirmar que fui eu mesmo, autêntico, que sempre aprendeu coisas novas com você, e vice-versa. Agora é a hora de você me ensinar coisas novas, e eu pô-las em prática e, para começar, aprender a viver um dia, assim como você viveu.

Obrigado por tudo, Bia, que você possa ser presente para nós de agora em diante.

Com amor,

Pedro Ivo.”

A história de Bianca Galvão de Oliveira foi contada pelo projeto Inumeráveis, um memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil.

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