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Os dois pesos e duas medidas na denúncia da desgastada Lava Jato contra o tucano José Serra

Primeiro tucano de expressão nacional denunciado pela operação, senador foi beneficiado pela prescrição de alguns crimes, pela mudança de jurisprudência do caso e pelos prazos da justiça suíça

O senador José Serra participa de reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em março.
O senador José Serra participa de reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em março.Geraldo Magela (AGENCIA SENADO)
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A man looks out of his window next to a banner that reads: "we are all Moro" during a protest against a speech given by Brazil's President Jair Bolsonaro after Justice Minister Sergio Moro announced his resignation, in Sao Paulo, Brazil, April 24, 2020 REUTERS/Rahel Patrasso
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Mais de seis anos após seu início, em março de 2014, a Lava Jato ofereceu a primeira denúncia contra um político de expressão nacional do PSDB. O senador José Serra (SP) foi acusado na sexta-feira passada (3) pela força-tarefa da Operação em São Paulo pelo crime de lavagem de dinheiro. Sua filha Verônica também foi alvo da denúncia, que contou com oito mandados de busca e apreensão em endereços ligados ao parlamentar. Segundo o Ministério Público Federal, o tucano “se valeu de cargo e de influência política para receber, da Odebrecht, pagamentos indevidos em troca de benefícios relacionados às obras do Rodoanel Sul”, fatos que teriam tido origem em 2006. Os valores pagos podem superar 4,5 milhões de reais.

A denúncia tem como base delações feitas por executivos e diretores da Odebrecht, que começaram à partir de acordo de colaboração firmado em dezembro de 2016. A acusação contra Serra só foi possível porque a força-tarefa afirmou que os crimes de lavagem de dinheiro atribuídos a ele foram cometidos até 2014. Alguns juristas apontaram aí uma manobra da força-tarefa, tendo em vista que em 2018 o Supremo Tribunal Federal decidiu que ilícitos cometidos pelo tucano até 2010 já estariam prescritos. O início dos pagamentos da Odebrecht a ele teriam ocorrido entre 2006 e 2007, período no qual ele deixou a Prefeitura de São Paulo para se eleger governador do Estado.

O hiato de seis anos para a denúncia contra o senador tucano por um crime que teria sido cometido 14 anos atrás chamou a atenção de políticos da oposição. “Essa questão que hoje a Lava Jato sai às ruas investigando, que é a do senador José Serra, há quanto tempo se sabe disso no Brasil? Há dez anos. A troco de quê [a Operação] é feita hoje? Como elemento de manipulação?”, indagou a ex-presidenta Dilma Rousseff em entrevista à agência Efe. De acordo com a petista, a ação contra Serra tem como objetivo “maquiar” a Lava Jato para tirar da operação o rótulo de anti-PT. “Toda a Lava Jato foi feita contra nós. Agora que eles estão tentando dar uma embelezadinha, uma maquiada na Lava Jato, é que eles vão lá atentar contra o senador”.

O PT, ao lado do então PMDB e do PP, foi um dos partidos mais atingidos pela operação, sendo que sua maior liderança, o ex-presidente Lula, chegou a ser denunciado, condenado e preso por seu envolvimento no esquema. Antes de Serra, o ex-senador Paulo Bauer (PSDB-SC) havia sido alvo de denúncia por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa. Outro tucano com influência no partido que chegou a ficar na mira da Lava Jato, ainda que de forma efêmera e sem denúncia até o momento, foi o ex-senador Aloysio Nunes (que também é mencionado na processo contra Serra). Já o deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG) foi denunciado e se tornou réu em um processo que foi desdobramento da Lava Jato, e que não ficou a cargo das forças-tarefas.

Dilma não está sozinha em suas críticas. Alberto Zacharias Toron, defensor de Aécio (e também de Dilma), reforça a tese da ex-presidenta. “A operação vive uma fase de declínio e desprestígio bem merecidos. Eles pouparam os caras do PSDB por tanto tempo, anos, e agora que estão nessa crise resolveram mostrar serviço”, afirma. Segundo ele, que chegou a ganhar o apelido de “rei do habeas corpus” no meio jurídico, por sua habilidade em revogar as prisões preventivas da Lava Jato, esse declínio da operação ocorre “pelos seus próprios erros”. “O Intercept Brasil e outros veículos de comunicação revelaram [nas reportagens conhecidas como Vaza Jato] o que nós advogados já falávamos há tempos sobre os abusos e arbitrariedades”.

Apesar das críticas com relação a uma suposta parcialidade da Lava Jato, a demora no andamento do caso envolvendo Serra também tem raízes na própria burocracia do Judiciário. O processo contra ele, que então estava com o Supremo Tribunal Federal tendo em vista o direito ao foro privilegiado do senador, foi enviado para a primeira instância —e consequentemente para a Lava Jato em São Paulo— apenas no final de 2018. Além disso, as autoridades suíças autorizaram o compartilhamento dos dados bancários do senador apenas no início de 2019, como revelou o jornalista Jamil Chade. Sem estas informações bancárias não seria possível provar que ocorreram movimentações na conta da qual ele era beneficiário até 2014, o que driblou a prescrição do caso.

O timing da denúncia contra Serra contrasta com o caso que levou Lula à prisão. As investigações contra o petista envolvendo o recebimento de um triplex no Guarujá como propina paga pela OAS começaram em 2015, e a denúncia da Lava Jato foi feita em setembro de 2016, apenas um ano após o início das apurações. Em 2017 ele foi condenado pelo então juiz Sergio Moro preso no ano seguinte. Pouco mais de quatro anos se passaram entre o início da apuração dos fatos e a prisão. Já no caso do tucano, entre o início das investigações após a delação da Odebrecht e a denúncia (primeira etapa jurídica após a investigação) se passaram três anos. Ao contrário do caso de Serra, conduzido pela força-tarefa de São Paulo, o do ex-presidente ficou nas mãos da equipe do Paraná.

O modo como a Lava Jato agiu contra Serra também foi alvo de críticas no meio jurídico. “Não queremos nada menos do que a lei para ele. O que vale para o Lula precisa valer para o Serra, e o que vale para o Serra precisa valer para o cidadão comum”, afirma Marco Aurélio de Carvalho, advogado e coordenador do grupo Prerrogativas, composto por juristas, juízes e professores em defesa do Estado de Direito e do pleno exercício de defesa. Carvalho aponta o que considera como um excesso desnecessário na ação contra o tucano: “Cumprir mandados de busca e apreensão após apresentar uma denúncia [como foi feito pela força-tarefa contra o senador] não se justifica, você não vai descobrir fato novo. E mais: qual o efeito de uma operação de busca e apreensão dez anos após o início dos fatos? É para constranger”. Apesar de condenar o que considera como abuso contra Serra, Carvalho também considera que a ação foi uma tentativa da Lava Jato “de vender uma suposta imparcialidade”. “Dizer que ela é seletiva para um grupo político é evidente”, afirma.

A assessoria de Serra divulgou nota alegando a prescrição do supostos crimes: “A Operação realizou busca e apreensão com base em fatos antigos e prescritos e após denúncia já feita”. Já seus advogados afirmaram que os fatos que foram objeto da ação contra o senador já “vinham sendo apurados pela Justiça Eleitoral”. O MPF, por sua vez, defendeu sua atuação no processo reforçando a tese de que os crimes investigados não teriam ligação com campanhas eleitorais, logo seriam de competência da Justiça Federal.

Em nota o senador criticou a ação: “José Serra reforça a licitude dos seus atos e a integridade que sempre permeou sua vida pública”. Apesar da imagem desgastada pelas acusações de corrupção nos últimos anos (além da Lava Jato, o esquema de cartel no metrô de São Paulo conhecido como trensalão respingou em seu nome), o tucano já foi considerado um expoente nacional do partido, tendo disputado —e perdido— duas eleições presidenciais.

O esquema utilizado por Serra para receber a propina, segundo o MPF, é similar ao usado por Eduardo Cunha, ex-cacique do então PMDB preso em outubro de 2016: uma conta bancária na Suíça em nome de empresa offshore. A força-tarefa analisou a fundo as movimentações financeiras atribuídas ao tucano, a ponto de identificar três “camadas” de lavagem elaboradas para dificultar o rastreamento dos valores e a identificação dos titulares. O senador seria o beneficiário oculto da Dortmund International (controlada por Verônica), companhia sediada no Panamá que recebeu ao menos 936.000 euros de empresas de José Amaro Pinto Ramos, apontado por delatores como um dos operadores do esquema. Ramos, por sua vez, recebia o dinheiro de offshores controladas pelo Grupo Odebrecht. A Procuradoria também conseguiu o bloqueio de cerca de 40 milhões de reais depositados em uma conta no país europeu, mas não deu mais detalhes sobre a titularidade da mesma.

Força-tarefa na berlinda

A ação contra Serra ocorre em um momento difícil para a Lava Jato, no qual começa a se desenhar um embate com o Procurador-Geral da República, Augusto Aras. Ganha força no MPF a ideia de criar um órgão central de combate à corrupção, batizado de Unidade Nacional Anticorrupção (Unac), ao qual ficariam subordinadas todas as forças-tarefas. A proposta, que antecede a indicação de Aras para a chefia da Procuradoria, está sendo discutida no Conselho Superior do Ministério Público, presidido por ele, e pode vir a tirar poder dos núcleos estaduais da Lava Jato, como de São Paulo, responsável pela denúncia contra Serra, e do Paraná, que deu origem a toda a operação. O PGR afirmou, em setembro de 2019, ser defensor da Lava Jato, mas disse que sempre apontou “os excessos”.

A relação entre os procuradores da Lava Jato e Aras desandou de vez em maio, quando o procurador-geral solicitou as bases de dados completas da operação para as forças-tarefas do Paraná, Rio e São Paulo. A coordenadora da Lava jato no STF, Lindôra Araújo, foi enviada por Aras a Curitiba para coletar o material, mas não foi autorizada pelos procuradores. Eles acionaram a corregedoria, alegando uma “busca informal” de provas por parte da emissária de Aras. Na última quarta-feira, 8 de julho, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, determinou que os procuradores da força-tarefa enviem à PGR todos os dados das investigações, numa importante derrota política para a Lava Jato.

O procurador Deltan Dallagnol criticou a decisão de Toffoli, mas disse que a Lava Jato irá obedecê-la. “A força tarefa cumprirá a decisão do Pres. do STF para dar acesso às bases de dados, mas lamenta a orientação inédita de compartilhar informações sigilosas e dados privados de cidadãos sem indicar investigação específica relacionada”, publicou em seu Twitter. Em nota, a operação lamentou “a decisão inaugure orientação jurisprudencial nova e inédita, permitindo o acesso indiscriminado a dados privados de cidadãos, em desconsideração às decisões judiciais do juiz natural do caso que determinaram.”



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