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Vida pós-covid-19 inclui meses de fisioterapia, remédios diários e ausência de cheiros e sabores

Parte dos pacientes curados relata problemas pulmonares e dores musculares persistentes. Especialistas ponderam que é cedo para falar em sequelas, mas alertam que doença pode demandar tratamento multidisciplinar por longo período

Um fisioterapeuta atende a um paciente com covid-19 no hospital de campanha do Anhembi, em 1 de julho.
Um fisioterapeuta atende a um paciente com covid-19 no hospital de campanha do Anhembi, em 1 de julho.MIGUEL SCHINCARIOL (AFP)
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O gerente de vendas Marcos Amancio, de 35 anos, teve sintomas da covid-19 quando São Paulo contava apenas 19 casos da doença e nenhuma morte causada pelo novo coronavírus. Havia tido contato com uma pessoa que veio do exterior e sentia cansaço, dores no corpo e dor de cabeça ―sintomas que poderiam ser de uma gripe qualquer. Com a baixa incidência da doença naquela época e a tentativa de rastrear os primeiros casos, conseguiu fazer o teste laboratorial (hoje realizado apenas nos casos graves) no dia 10 de março e foi diagnosticado com o novo coronavírus. Amancio permaneceu em quarentena por 14 dias e, quando saiu o resultado, já tinha até melhorado dos sintomas. Fez todo o tratamento de casa porque apresentava uma manifestação leve da doença. “Foi bem tranquilo no período. Mas isso foi só o começo”, diz.

Enquanto a epidemia avançava pelo país, Amancio pensou que sua história com o novo coronavírus estivesse encerrada. Até que um mês depois começou a apresentar uma tosse persistente. Como não melhorava, decidiu procurar um médico. Fez uma bateria de exames e, se por um lado o diagnóstico da tosse foi apenas uma alergia, a tomografia que fez mostrou um pulmão debilitado. A imagem revelada no exame, lhe disse o médico, era muito semelhante à de infectados pelo novo coronavírus na fase aguda da infecção. Poderia inclusive ser diagnosticado assim, segundo as normas atuais do Ministério da Saúde para o diagnóstico clínico, se não tivesse realizado o exame do coronavírus em março. “Fiquei com sequelas do lado superior esquerdo do pulmão que aparentemente foi causada pela covid-19. E agora eu tenho que fazer um tratamento para o meu pulmão se recuperar. Como é uma doença nova, o médico disse que é difícil falar em tempo, mas falou para eu me preparar para tomar medicamentos por um ou dois anos”, conta.

Amancio, que agora deverá consultar um pneumologista a cada dois meses, não é fumante nem tem histórico de doença pulmonar na família. Quando foi diagnosticado com a covid-19, não chegou a ser hospitalizado nem realizou exames como tomografia e raio X por apresentar um quadro leve. Mesmo com a descoberta das lesões no pulmão, ele diz que consegue levar uma vida normal. Mas terá que seguir à risca o tratamento para evitar problemas futuros.

Ele é uma das 906.286 pessoas que já contraíram o novo coronavírus e conseguiram se recuperar da doença, segundo a contagem do Ministério da Saúde até este domingo (5). Mas superar a fase aguda da infecção não significa necessariamente estar totalmente livre dos efeitos da covid-19, pelo menos para uma parcela dos curados. Pacientes espanhóis relatam ainda apresentarem alguns sintomas mais de 100 dias depois de serem infectados. No Brasil, também há pacientes que arrastam os efeitos do coronavírus por semanas e até meses. Médicos e pesquisadores evitam falar em sequelas ―quando a pessoa apresenta complicações e sintomas por um longo período ou de forma permanente. Mas a experiência na ponta de atendimento mostra que uma parcela dos curados ―especialmente os que tiveram uma manifestação mais grave da doença― têm apresentado problemas pulmonares, renais, cardíacos e até neurológicos.

Marcos Amancio descobriu um problema pulmonar mais de dois meses após ser infectado pelo novo coronavírus.
Marcos Amancio descobriu um problema pulmonar mais de dois meses após ser infectado pelo novo coronavírus.Arquivo pessoal

“O que temos visto é que pode sim haver sequelas em vários órgãos e de diversos tipos. Especialmente as relacionadas ao quadro pulmonar, vemos as mesmas sequelas de infecções graves, com fibroses e restrição da capacidade respiratória. É uma cicatriz no pulmão que dificulta a respiração e é proporcional ao acometimento do pulmão durante a fase aguda. Mas obviamente pode haver exceções em quadros mais leves com algum nível de restrição, como por exemplo um cansaço aos esforços”, explica Fábio Lima, pesquisador e médico infectologista do Instituto Nacional do Câncer.

A comunidade médica considera que é cedo para apontar o que é consequência direta do novo coronavírus ou das complicações causadas por infecções em geral, ou mesmo por um longo tempo de internação. Mas o fato é que uma fatia desses pacientes que tiveram a covid-19 necessita de um tratamento multidisciplinar mesmo depois da “cura”. Com sintomas que passam por perda de força muscular, predisposição para trombose, alteração persistente no olfato e até complicações nos rins e no coração, os cuidados pós-coronavírus podem ser necessários por um longo tempo. Em entrevista publicada pelo EL PAÍS, o virologista belga Peter Piot, que há 40 anos estuda os vírus causadores das principais epidemias do mundo ―incluindo a da Aids e do ebola―, também demonstrou preocupação com a permanência de sintomas . “Ele vai deixar muita gente com afecções crônicas”, afirmou.

Juliana (nome fictício) leva semanas fazendo fisioterapia no Ceará para tentar minimizar os efeitos da doença que seguem latentes mesmo após a fase aguda da infecção. Ela começou a apresentar sintomas da covid-19 há dois meses. Três dias depois de começar a sentir febre e apresentar tosse e perda de paladar e olfato, passou a sentir também um cansaço persistente. Procurou um hospital particular, e os exames mostraram que estava com 35% dos pulmões comprometidos. Voltou pra casa com medicação para aliviar os sintomas, mas no dia seguinte o cansaço era tanto que a fez retornar ao hospital. Com 70% de comprometimento pulmonar, precisou ficar internada e acabou entubada em uma UTI. Ficou 20 dias internada, cerca de sete deles com um tubo enfiado na garganta. E mesmo depois que recebeu alta, a vida não voltou ao normal.

“Depois que saí da UTI, ainda sentia falta de ar. Estava com cateter de oxigênio no nariz, e eu não andava. Todo dia, fazia fisioterapia no hospital e não conseguia nem ficar em pé”, conta. Juliana só foi liberada dois dias depois de conseguir voltar a andar e quando a sua saturação começava a se sustentar. Voltou pra casa com outros medicamentos para evitar possíveis complicações, como por exemplo os anticoagulantes que toma para mitigar o risco de trombose. A infecção pelo novo coronavírus aumenta da formação de coágulos sanguíneos e trombos, um quadro que pode causar um AVC, segundo médicos. Nas primeiras semanas, ainda sentia tanta falta de ar que pensou que não estivesse curada. São efeitos que ela sente até hoje. “A cada sessão [de fisioterapia], sinto que vou melhorando, mas ainda não tô normal. Sinto falta de ar e fraqueza muscular”, diz. E complementa: “Hoje a fisioterapeuta disse que sou a que está melhor entre os 30 pacientes pós-covid dela. Às vezes, fico me sentindo culpada, com tanta gente pior que eu”.

O novo coronavírus também mudou a rotina alimentar “O gosto mudou, e eu não consigo mais tomar [refrigerantes]. Recuperei o paladar, mas não sei se isso é por alguma sequela neurológica.” Também é comum sentir um cheiro desagradável persistente, algo que ela achou ser dos produtos hospitalares, mas que permaneceu depois que voltou para casa. O irmão de Juliana ―que também contraiu a doença, mas não precisou ser internado― reclama de problemas com o olfato.

“Uma coisa que tem preocupado a gente é a capacidade do vírus penetrar no sistema nervoso central, daí a perda do paladar e do olfato. Há uma preocupação, que é teórica até o momento, de que possam acontecer alterações neurológicas mais tardiamente também”, explica a neurologista Gisele Sampaio, membro da Academia Brasileira de Neurologia e integrante da diretoria da Sociedade Brasileira de Doenças Cerebrovasculares. Ela explica que o novo coronavírus causa uma inflamação importante no bulbo olfatório (a área olfatória primária do cérebro), causando edema e inchaço. A maioria dos pacientes se recuperam dela, mas pode demorar mais em alguns casos e causar alterações no paladar e olfato mesmo depois da fase aguda.

Sampaio diz que estudos franceses têm mostrado que pacientes com a covid-19 que ficaram muito tempo entubados têm apresentado outros sintomas neurológicos depois de curados, como perda de memória, dificuldade de tomar decisões no dia a dia (por problemas de cognição). “Esses problemas são detectados apenas em pacientes que tiveram manifestação grave da doença”, explica. Ainda não é possível dizer se isso seria fruto de uma ação direta do novo coronavírus ou uma consequência do uso de sedativos na entubação e do longo tempo de internação em terapia intensiva. “Vamos ter que esperar pra fazer uma análise de evolução desses sintomas”, diz.

O infectologista Fábio Lima ainda alerta para outros problemas que os pacientes “curados” podem enfrentar dependendo de como foi a sua evolução no período em que estavam infectados. Uma fatia dos doentes graves tem apresentado, por exemplo, problemas renais. Embora se livrem da hemodiálise nessa fase, o processo de recuperação total das funções dos rins pode levar meses. Assim como os pacientes com predisposição cardíaca ou os que apresentaram problemas no coração durante a doença, já que o vírus também afeta esse órgão. Segundo um estudo que analisou os dados de pacientes infectados em Wuhan, na China, 20% dos pacientes apresentavam algum tipo de lesão cardíaca. “A covid-19 não se encerra com a resolução do quadro agudo. Principalmente quando o caso é grave, ela se estende por tanto tempo no hospital que as sequelas podem durar meses, seja pela doença ou pelo tempo de internação. E precisa de tratamento multidisciplinar”, finaliza.

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