_
_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Bia só confirma a política de João Doria, quem diria

Com jatos de água fria sobre os “feios, sujos e malvados”, o governador João Dória já havia dito ao que vinha e a primeira-dama só confirma a sua política

Bia Doria
A primeira-dama do Estado de São Paulo, Bia Dória, presidente do Fundo Social, em uma ação do Governo em Heliópolis.Divulgação/Governo de SP
Outras colunas de Xico Sá
26/04/20. (DVD 998). Niños y niñas en las calles de Madrid el primer dia que pueden salir durante la pandemia de coronavirus. 
Jaime Villanueva.
Melô da quarentena: Plunct Plact Zum, não vai a lugar nenhum
-FOTODELDIA- AME8270. BRASILIA (BRASIL), 27/03/2020.- Detalle de las partículas de saliva del Presidente de Brasil, Jair Bolsonaro, al salir del Palacio do Alvorada este viernes, en la ciudad de Brasilia (Brasil). En una transmisión en directo por sus redes sociales ayer, Bolsonaro insistió en que es necesario adoptar medidas sanitarias frente a la COVID-19, que hasta ahora en Brasil causó 77 muertes y ha contagiado a 2.915 personas, pero reiteró que también es necesario "preocuparse por el empleo" de aquellos que perderán su trabajo o no lo tienen. EFE/ Joédson Alves
Advertência de Jeca Tatu ao presidente da República
A person walks past a sign laying on the ground that reads: "It's China's fault" as supporters of Brazil's President Jair Bolsonaro take part in a protest blaming China for being the country where the coronavirus disease (COVID-19) started, in front of the Chinese consulate in Rio de Janeiro, Brazil May 17, 2020. REUTERS/Pilar Olivares
Pamonhas, pamonhas, pamonhas; fake news, fake news, fake news

“Tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem gente com fome”. Escuto o poeta pernambucano Solano Trindade (1908/1974) e o seu poema em ritmo de barulho de trem do subúrbio encobrindo a voz da artista plástica Bia Doria, primeira-dama do Estado de São Paulo. “Tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem gente com fome”, seguem os vagões ferroviários chacoalhando os viventes.

A primeira-dama versa no seu solo palaciano: “Não é correto você chegar lá na rua e dar marmita, porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Por que a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua”.

A socialite Val Marchiori, interlocutora de Bia Dória no vídeo gravado à sombra do Palácio dos Bandeirantes, pontua a prosa com o seu “hello” característico e a presidente do Fundo Social do governo enumera os abusos e os quereres dessa gente das calçadas: “A pessoa quer, ela quer receber, ela quer a comida, ela quer roupa, ela quer uma ajuda e não quer ter responsabilidade. Então isso tá muito errado, porque se a gente quer viver num país...”.

Solano Trindade, o primeiro rapper brasileiro, dá o tom na cadência dos trilhos suburbanos. “Só nas estações/ quando vai parando/ lentamente começa a dizer/ se tem gente com fome/ dá de comer/ se tem gente com fome/ dá de comer/ se tem gente com fome/ dá de comer/ Mas o freio do ar/ todo autoritário/ manda o trem calar/ Psiuuuuuuuuuu”.

Que gente abusada é essa que escolhe viver nas ruas de São Paulo, uns mal-agradecidos, as autoridades dão do bom e do melhor, mesmo assim “os feios, sujos e malvados” -como na fita do cinema italiano de Ettore Scola- insistem em querer a fina pasta das marmitas à luz de velas e fogueiras no inverno dos minhocões e alamedas. Hello, rafameia, hello, ralé folgada, mais respeito com o high society que acabou de declarar, honestamente, seu Imposto de Renda.

São abusados e não é de hoje. Porca miséria. É só lembrar o esperneio diante de uma das primeiras tentativas arrojadas de assepsia na cidade de SP. O marido da Bia, o então gestor -como na propaganda eleitoral- e prefeito João Doria (PSDB), em julho de 2017, implementara uma ação de limpeza com jatos de água nos habitantes dos arredores da praça da Sé. Sim, naquela fase do calendário em que a moça do tempo havia registrado na tevê a madruga mais fria do ano, 7,9ºC . Que falta de responsabilidade dos maltrapilhos e zumbis, hello, com suas barracas e cobertores Parayba a estragar a paisagem da modernidade paulistana. Só fotoshop salva.

Como criar um ambiente de negócios perfeito, meu, digo, meu Deus mercado? Como atrair investidores e as parcerias público-privadas mais rentáveis e assépticas? A locomotiva do Brasil, ao contrário do trem de Solano Trindade, tem pressa, depois a gente privatiza tudo e aí vem nego reclamar em protesto ali bem na fronteira da Faria Lima com o largo da Batata, o jardim dos caminhos dos dois Brasis que não se bifurcam. Essa gente que descarrila e faz de tudo para viver sobre os dormentes, que chance perdida na bolsa de mercadorias & futuro.

Repare no padre Júlio Lancellotti, que péssimo exemplo, segue alimentando os famintos, sob o sol camusiano dos estrangeiros refugiados d'África ou diante frio dos novos baianos que um dia sonharam em curtir Sampa numa boa.

A fome não preenche quadradrinho com o xis na ficha para saber sexo, gênero, donde veio e qual destino.

Marmita é o encontro da fome com o mínimo papel alumínio da justiça divina. Alguém esquenta? Ser humano é microondas.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras), entre outros livros.



Registre-se grátis para continuar lendo

Obrigado por ler o EL PAÍS
Ou assine para ler de forma ilimitada

_

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_