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“Não se pode pensar a democracia real no Brasil se o racismo não for um ponto central”

Eugênio Lima, um dos articuladores de manifesto antirracista lançado neste domingo, diz que movimento não pode ficar à margem nas coalizões contra a ameaça autoritária no país

Protesto contra o racismo em São Gonçalo, no Rio, onde o adolescente João Pedro, de 14 anos, foi morto baleado pela polícia.
Protesto contra o racismo em São Gonçalo, no Rio, onde o adolescente João Pedro, de 14 anos, foi morto baleado pela polícia.Silvia Izquierdo (AP)
Daniela Mercier

“Estamos vindo a público para denunciar as péssimas condições de vida da comunidade negra.” No momento em que a pauta do racismo volta a chamar a atenção das ruas do Brasil, na esteira da onda de protestos contra a morte de George Floyd, homem negro rendido e asfixiado pelo joelho de um policial branco nos Estados Unidos, e em que uma pandemia tira a vida da população mais pobre que não pode ficar em casa para se proteger, essa frase parece ser desse duro ano de 2020. Mas é um trecho do manifesto de fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, que em julho de 1978 fez um grande ato nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo para convocar homens e mulheres negros a protestar contra a violência racial.

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A protester raises a fist in front of a police officer during a demonstration against Brazilian President Jair Bolsonaro and in support of democracy in Sao Paulo, Brazil June 7, 2020. REUTERS/Amanda Perobelli
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A declaração é lembrada agora, mais de 40 anos depois, em um novo manifesto, estampado em página inteira nas edições deste domingo dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo. A campanha “Enquanto houver racismo não haverá democracia” é promovida pela Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de 100 entidades do movimento negro de todo o país, em parceria com os coletivos Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro. Busca coletar assinaturas para promover uma “frente ampla” em torno de ações de combate ao racismo e a cobrança junto ao poder público de direitos como educação, emprego e segurança. E parte do entendimento de que a luta antirracista precisa ganhar centralidade nas discussões em defesa da democracia e contra o Governo Bolsonaro que ganharam força nas últimas semanas.

"Qualquer projeto ou articulação por democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo. Convocamos os setores democráticos da sociedade brasileira, as instituições e pessoas que hoje demonstram comoção com as mazelas do racismo e se afirmam antirracistas: sejam coerentes. Pratiquem o que discursam", diz o texto do manifesto.

“Tem se falado muito em repactuar, de criar um novo pacto democrático no Brasil. Mas não existe possibilidade nenhuma de pensar a democracia real no país se o racismo não for um ponto central”, explica Eugênio Lima, fundador do Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro e um dos articuladores da iniciativa. Para ele, a pauta não pode ser lateral nos protestos de rua contra o autoritarismo ou mesmo em manifestos que pregam unidade em prol do regime democrático —como o #Juntos, também publicado em jornais em maio, que une do petista Fernando Haddad ao apresentador Luciano Huck em uma campanha que tenta emular a frente obtida nos anos 80 com o Diretas Já.

“Os desmandos do Governo Bolsonaro são nítidos, mas isso não é uma pauta apenas de Governo. É uma pauta para a sociedade brasileira. Neste momento em que se discute como a gente pode pensar numa nova estrutura democrática para a sociedade, não existe democracia sem o combate ao racismo”, afirma Lima.

Imagem da campanha 'Enquanto houver racismo não haverá democracia', lançada neste domingo.
Imagem da campanha 'Enquanto houver racismo não haverá democracia', lançada neste domingo.

A assinatura de Haddad é uma das 132 destacadas pelo manifesto para representar os anos de “abolição inconclusa” da escravidão. Endossam também o texto as pesquisadoras Djamila Ribeiro e Sueli Carneiro, o ambientalista e líder indígena Ailton Krenak e nomes internacionais como Danny Glover, Mia Couto e Valter Hugo Mãe. Novas adesões serão coletadas pelo site comracismonaohademocracia.org.br, lançado também neste domingo. Ao todo, segundo o articulador, cerca de 5.000 assinaturas já foram obtidas em uma pré-campanha via WhatsApp.

Lima explica que a ideia de “frente ampla”, incluindo o apoio de pessoas brancas e indígenas de diferentes setores da população, é importante porque que a questão racial é “parte do sistema” e só será vencida quando toda a sociedade passar da comoção em relação “à crueldade praticada contra negros” para mudanças concretas que promovam igualdade, promovidas por quem está no poder —em sua maior parte, brancos. Daí a estratégia inicial da publicação nos jornais de circulação nacional. “Muitas vezes parece que a prática antirracista é uma escolha, e não uma condição para a democracia existir. Não: a luta antirracista é a sobrevivência da democracia”, declara.

Reprodução do anúncio do manifesto no jornal 'Folha de S.Paulo'
Reprodução do anúncio do manifesto no jornal 'Folha de S.Paulo'

Protestos

O movimento é lançado no dia em que novos protestos em defesa da democracia e contra o Governo Jair Bolsonaro devem ocupar as ruas —e as redes—. Em São Paulo, a partir das 14h, um ato antifascismo e antirracismo convocado por torcidas organizadas, a Frente Povo Sem Medo e coletivos do movimento negro é convocado pelo terceiro fim de semana seguido. Desta vez, os manifestantes voltam à avenida Paulista, onde ocorreu o primeiro protesto, que terminou em choque com a Polícia Militar, e planejam estender uma bandeira de 100 metros com uma mensagem contra o presidente.

Danilo Pássaro, coordenador nacional do Somos Mais Democracia, que reúne as torcidas organizadas, diz ser necessário construir uma unidade pela democracia. “É algo que deveria ter sido feito muito antes e pelos partidos, mas não ocorreu em razão de ressentimentos entre eles. Mas nós temos a democracia e o povo brasileiro como prioridade”, afirma. Como exemplo dessa unidade ele cita a adesão inicial de torcidas de times rivais —torcedores de Palmeiras, Santos e São Paulo saíram às ruas com o Corinthians— e ressalta a presença de pessoas de classe média no movimento iniciado pela periferia. “A gente não saiu para a rua para protestar, a gente já estava na rua”, explica. Para a maioria de nós nunca existiu quarentena. Para nós não foi garantida uma política de proteção social,e o Governo fez a gente furar o isolamento por meio do sufocamento financeiro. Muitos somos trabalhadores informais e precisamos sair às ruas para sobreviver", diz.

Também neste domingo, o movimento Levante das Mulheres Brasileiras promove ações nas redes sociais contra o Governo. A primeira iniciativa será pelo Twitter, a partir das 14h, por meio da hashtag #MulheresDerrubamBolsonaro. Às 14h30, acontecerá uma live nas páginas do movimento no Youtube e no Facebook. O combate ao racismo também está na pauta. "A desastrosa política de Bolsonaro —que mata diariamente mil brasileiros por covid-19, amplifica a necropolítica e o genocídio de jovens negros, aumenta a desigualdade e o empobrecimento, retira direitos, quer armar a população, espalha mentiras e ódio, faz apologia à ditadura, ao racismo e ao fascismo— mobilizou o Levante das Mulheres a produzir um manifesto para pressionar as instituições da República. A carta recebeu mais de 11.000 assinaturas até este sábado.

Já grupos a favor de Bolsonaro marcam ato para as 13h, no viaduto do Chá, centro de São Paulo.

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