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Próximo centro global da pandemia, Brasil resume sua gestão à ‘guerra de dados’

Recuo do Governo sobre divulgação de boletins não elimina alerta de cientistas sobre transparência. Projeção indica que óbitos podem chegar a 5.000 por dia em julho

Latinoamérica
Pessoas com máscaras caminham em São Paulo.Sebastião Moreira (EFE)
Beatriz Jucá

Após uma semana polêmica, em que a transparência dos dados sobre coronavírus esteve ameaçada, um clima de desconfiança ainda paira sobre as informações oficiais do Governo Bolsonaro. O país, que já soma 40.919 mortes e 802.828 casos da covid-19 e caminha para se tornar o principal epicentro da pandemia no final do próximo mês, não recebeu do Ministério da Saúde por três dias os dados completos sobre a doença e foi avisado, de forma casual pelo presidente da República, dos planos de uma mudança de metodologia que impactaria as estatísticas, jogando-as para baixo. Após uma decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, o Governo teve que voltar a divulgar o número total de mortos pela doença. E o ministro interino Eduardo Pazuello, chamado a dar explicações a deputados, afirmou que tudo era apenas uma “proposta” e que, em breve, uma nova plataforma seria lançada, com dados completos e detalhados —divulgada nesta sexta-feira, trouxe apenas dados já conhecidos. A breve alteração, entretanto, já havia movido a imprensa e os especialistas, que correram para colocar plataformas próprias de contagem no ar. E acendeu um alerta entre pesquisadores, que seguem debruçados sobre a checagem das informações oficiais e defendem mais transparência.

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A ideia do Governo de Jair Bolsonaro, que minimiza a pandemia no país desde a chegada dos primeiros casos, era divulgar diariamente apenas as mortes que ocorreram nas últimas 24 horas e não mais tudo o que foi registrado neste mesmo período pelos Estados. O dado seria muito menor, já que o país não tem capacidade de testar rapidamente os casos suspeitos e as confirmações, às vezes, acontecem só após o óbito —reportagem da Folha de S.Paulo desta sexta aponta que 44% das vítimas ficariam de fora das estatísticas diárias por esse novo método. Atualmente, 3.608 óbitos por síndrome respiratória, ou seja, ocorridos com sinais compatíveis aos da covid-19, ainda esperaram resultados.

Para o professor de medicina Domingos Alves, responsável pelo Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, a tentativa do Governo de mudar a forma de divulgação dos dados está relacionada ao fato de que o país caminha para se tornar o primeiro epicentro da pandemia no mundo. “Nós somos o único país no mundo que depois do dia 50 estava acelerando no número de casos e de óbitos. Temos projeções que indicam que podemos chegar a 5.000 óbitos por dia em julho”, afirma. “O Brasil até agora não fez uma gestão da epidemia porque só testamos em média as pessoas que estão internadas e, portanto, já isoladas. Não estamos isolando quem está transmitindo a doença porque não testamos em massa. Não houve nenhuma política de isolar os contactantes”, critica ele.

O Ministério alegava que os novos registros de óbitos antigos seriam contabilizados em datas retroativas, mas ao retirar da divulgação o número total de óbitos ocorridos desde o início da pandemia impossibilitaria o acompanhamento. Isso gerou uma reação forte da comunidade científica, que temia o uso de um dado real para apresentar um panorama distorcido da epidemia no país. Atualmente, epidemiologistas que analisam o comportamento do novo coronavírus no Brasil já consideram em seus estudos as datas de ocorrência do óbito, fazendo projeções que levam em consideração também o atraso para a testagem. Foi esmiuçando esses dados, por exemplo, que o Observatório Covid-19 BR chegou à estatística de que 61% dos óbitos demoram mais de dez dias pra chegar ao sistema e que apenas 0,7% deles são computados no mesmo dia de ocorrência.

Agora, o Ministério discute com secretários estaduais e municipais da Saúde a unificação dos sistemas de informação no qual profissionais notificam as hospitalizações por síndrome aguda respiratória grave (SRAG), uma complicação da covid-19 e também de outras síndromes gripais. Num cenário de poucos testes e demora para os resultados, as internações por SRAG têm sido uma importante métrica para observar o avanço da epidemia. Nos últimos dias, o próprio Pazuello falou em simplificar formulários de registros desses casos. Sem detalhar como seria essa unificação, acendeu novos alertas em meio ao ruído já causado pela tentativa da semana passada de divulgar parcialmente os dados.

O Brasil tem importantes bases de dados públicas usadas para analisar o comportamento de diversas doenças, como a gripe suína, a dengue e, mais recentemente, a covid-19. A legislação do país obriga a notificação compulsória de uma alta gama de enfermidades pelos hospitais. O país também tem um Sistema Único de Saúde que permite um acesso amplo a hospitais e, consequentemente, uma maior notificação. Um desses sistemas é o Sivep-Gripe, pelo qual pesquisadores têm conseguido também uma série de microdados relacionados à SRAG, que incluem informações como localização, raça, idade e comorbidades dos pacientes. “O sistema de vigilância sanitária do Brasil é um dos melhores do mundo. Temos um dos maiores quadros de doenças notificadas compulsoriamente. O fato de o Brasil ter o SUS e uma vasta quantidade de doenças que devem ser informadas compulsoriamente torna nossos dados muito confiáveis”, explica o cientista Vítor Sudbrack, físico que integra o Observatório Covid-19 BR. Ele explica que o sistema tem problemas técnicos ―como por exemplo a permissão de pontuações em campos de observação que podem atrapalhar a leitura numa linguagem de programação― mas que é rico em confiabilidade dos dados.

O problema com as recentes mudanças anunciadas pelo Ministério, explica, não é a apresentação de um dado que não é verdadeiro, mas a possibilidade de sua utilização em uma narrativa que poderia não representar a realidade da epidemia no país. Os dados fidedignos são importantes para controlar a doença enquanto ainda não há vacina nem tratamento com eficácia comprovada. Eles ajudam na tomada de decisões dos gestores e a mostrar para a população, por exemplo, porque é preciso manter o isolamento nas regiões mais afetadas. “O que a gente vê é que os recursos que temos acabam não sendo usados, sendo sucateados ou sendo usados com posição duvidosa”, afirma Sudbrack. Se o Ministério da Saúde passar a disponibilizar o que prometeu na nova plataforma ―ou seja, incluir os números de óbitos por data de ocorrência e também os acumulados―, ele vê a revisão como positiva. Por enquanto, o Observatório segue analisando a base de dados nacional e checando os números com àqueles apresentados pelos Estados que acessam os mesmos sistemas. “A revisão, quando bem feita, clara, transparente e debatida, é bem vinda”, diz.

No mês de maio, o Governo Federal até ampliou a transparência sobre os dados da covid-19. Passou a disponibilizar microdados no OpenDataSUS, uma plataforma que trouxe aprimoramentos de informações estratificadas. Nos primeiros dias, incluía até o CEP de infectados e pessoas que morreram pela covid-19. O LabCidade, da USP, chegou a desenvolver uma plataforma para o acompanhamento de casos por rua em São Paulo, mas esse dado foi retirado da base de dados do Ministério. “No caso da variável CEP, a informação é caracterizada como sensível já que facilita a identificação do indivíduo. Por isso, respeitando a Lei Geral de Proteção aos dados – LGPD (Lei nº 13.709/2018), foi retirada. Esta ação contribui para garantir e preservar a privacidade do cidadão”, explica a pasta. O dado não deve retornar nem mesmo com a decisão do STF na última segunda-feira (8), já que desde 2 de junho (antes da mudança na divulgação) já não estava disponível ao público.

Seja como for, especialistas apontam que não basta apenas disponibilizar um amplo volume de informação nas bases de dados abertas. A transparência também precisa acompanhar a plataforma criada pelo Governo para se comunicar com a população. “O painel que eles divulgam já são outros 500. Eles processam o dado com uma metodologia que não é amplamente divulgada”, explica Sudbrack. O pesquisador diz que as tentativas recentes de mudança na divulgação dos dados fragilizam a transparência. “Esperamos que os dados continuem confiáveis. A questão é que você pode dar dados confiáveis que não transparecem a realidade. É o que aconteceria se eles divulgassem só os óbitos ocorridos no dia”, pontua. A epidemiologista Ana Ribeiro, que atua no serviço em vigilância do Hospital Emílio Ribas e integra o Observatório, também defende mais clareza sobre as metodologias do Ministério para consolidar os dados e informá-los à população. “Precisa ficar muito clara a fonte, de onde eles estão utilizando a coleta de dados (quando divulgarem os óbitos ocorridos em 24 horas)”, diz. Na plataforma com dados processados, os casos de SRAG por exemplo estão desatualizados há cerca de três semanas.

A transparência dos Estados também deixa a desejar. O mais recente Boletim do Índice de Transparência da Covid-19, realizado pela Open Knowledge Brasil, aponta que houve evolução na abertura de dados nos últimos meses, mas um terço dos Estados ainda não publicam os microdados que poderiam ser usados por cientistas para análises mais detalhadas. Também seguem frágeis as informações sobre a ocupação de leitos hospitalares, onde são tratados os infectados com manifestação mais grave da doença.

Fim do isolamento

Os dados da pandemia são cruciais para orientar políticas públicas e as ações dos governantes na hora de relaxar o isolamento social. Vários Estados brasileiros já começam a estabelecer seus planos de reabertura econômica mesmo quanto o país ainda não consegue testar em massa a população. O ministro interino Pazuello afirmou que o país vem num esforço de ampliar a testagem, mas já admitiu que não há como chegar aos 40 milhões de exames prometidos pelo seu antecessor, Nelson Teich. Em São Paulo, por exemplo, cientistas dizem que sequer tiveram tempo para analisar o risco da abertura do comércio ocorrida neste feriado tamanha a pressa da decisão. E criticam que o Governo use dados de registro e não de data de ocorrência para essa análise.

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