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Três de cada dez pacientes internados em UTIs com a covid-19 não conseguem se recuperar

Dado é de uma plataforma que monitora um terço dos leitos de terapia intensiva das redes pública e privada em todos os Estados brasileiros. Mortalidade de pacientes intubados é maior e chega a 66%

Profissionais da saúde fazem um raio-X do pulmão em um paciente em uma UTI.
Profissionais da saúde fazem um raio-X do pulmão em um paciente em uma UTI.AMANDA PEROBELLI (Reuters)
Beatriz Jucá

Enquanto ainda não há medicamentos capazes de curar infectados pelo novo coronavírus nem uma vacina para imunizar a população, um número crescente de pacientes mais graves com a covid-19 têm precisado de leitos de terapia intensiva ―uma estrutura que inclui equipe médica especializada e aparelhos como respiradores e ventiladores mecânicos― para ajudá-los principalmente a respirar durante a fase mais aguda da infecção. Mas mesmo os resultados em pacientes que conseguem chegar à terapia intensiva desvelam uma alta mortalidade da nova doença em sua manifestação mais grave. Três de cada dez pessoas que passaram pela UTI com a covid-19 morrem no Brasil, segundo estima uma plataforma da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) que monitora 13.695 leitos deste tipo, cerca de um terço do total do país.

De acordo com a AMIB, a mortalidade é ainda maior no grupo de pacientes que precisaram da ventilação mecânica para ajudá-los a respirar. Segundo a mesma plataforma, apenas um em cada três pacientes com o novo coronavírus que foram internadas nessas estruturas e entubadas consegue de fato se recuperar e voltar para casa. A mortalidade elevada em quem tem um grande comprometimento dos pulmões não é uma característica exclusivamente brasileira.

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“Essa mortalidade alta é explicada pela gravidade da doença e segue a mesma linha dos Estados Unidos, por exemplo. A importância do dado é pra chamar atenção da população sobre essa gravidade”, diz o médico Ederlon Rezende, que integra o conselho consultivo da associação. Os dados estão em uma plataforma chamada UTIs brasileiras, que não inclui todos os leitos de terapia intensiva do país, mas que contém uma amostragem representativa, já que cadastra cerca de um terço desse tipo de leito em todos os Estados. Os dados ―que incluem informações de casos admitidos ao longo de dois meses e meio, entre 1 de março e 15 de maio― lançam luzes sobre as características demográficas das UTIs que recebem os casos mais graves da doença (que, segundo estimativas científicas internacionais, corresponde a até 5% dos infectados).

Ela indica, por exemplo, que pacientes diagnosticados com a covid-19 e admitidos em leitos de terapia intensiva costumam permanecer em média 10 dias internados e que a maioria deles (54%) têm mais de 65 anos de idade. Também lança luzes sobre os tipos de tratamento específico mais demandados por essa população, que nem sempre necessita apenas da ventilação mecânica, já que o novo coronavírus provoca inflamações sistêmicas que podem prejudicar também o funcionamento dos rins e até a circulação do sangue.

Pouco mais de 60% das UTIs cadastradas na plataforma estão na rede privada e o restante delas pertence a grandes hospitais públicos de referência. Ou seja, todos eles têm uma capacidade estrutural e de organização maior. “São hospitais melhor organizados, que conseguem coletar dados mesmo durante uma pandemia. A realidade nua e crua tende a ser pior ainda”, alerta Rezende. Isso porque parte dos leitos que vêm sendo abertos para a pandemia enfrentam dificuldades para equipá-los com respiradores e também contratar profissionais especializados. O grande volume de pacientes com a doença tem colocado sistemas de saúde de vários Estados à beira do colapso, com uma demanda que cresce numa velocidade maior que a capacidade dos governantes em abrir novos leitos.

Segundo o médico intensivista, isso mostra que a mortalidade observada na plataforma não está relacionada à carência de equipamentos como respiradores ou de profissionais qualificados porque são unidades de saúde bem estruturadas, mas ao comportamento da covid-19. “Esses pacientes, se eles não receberem a ventilação mecânica, a mortalidade é 100%. A ventilação mecânica conseguiu salvar um de cada três. O dado é duro, mas é importante para chamar a atenção da população sobre a necessidade de se proteger”, afirma Rezende. Enquanto ainda não há medicamento capaz de curar a doença nem vacina para proteger a população, especialistas indicam que a forma mais eficaz de se proteger do vírus é cumprindo as medidas de isolamento social.

Embora cerca de 80% das pessoas infectadas pelo novo coronavírus apresentem uma manifestação leve da doença, a gravidade da doença nos 5% de pacientes mais críticos que precisam de cuidados intensivos tem chamado a atenção dos médicos intensivistas. “No paciente que apresenta complicações e vem pra UTI, a covid-19 tem sido bem agressiva. A gente realmente tem uma dificuldade grande de conseguir retirar o paciente da UTI e mandar para a enfermaria. A mortalidade também é alta”, conta um médico intensivista que trabalha em unidades de terapia intensiva tanto da rede pública quanto da rede privada no Ceará e que preferiu não se identificar. Ele diz que seus pacientes têm permanecido entre 15 e 20 dias na terapia intensiva e que alguns precisam de outros tratamentos específicos além dos respiradores.

Segundo os médicos, a maioria dos pacientes graves com a covid-19 apresenta insuficiência respiratória, mas há casos em que o quadro evolui para falha dos rins e eles passam a precisar de hemodiálise. Uma parcela menor precisa fazer circulação sanguínea extracorpórea, com o auxílio de equipamentos específicos. Segundo a plataforma UTIs brasileiras, 13% dos pacientes com a covid-19 precisaram de hemodiálise enquanto 30% precisaram de drogas para estabilizar a pressão, um cuidado que necessita ser monitorado por equipamentos. A saída do paciente, segundo os médicos, não depende só da estrutura da UTI. Há um esforço de garantir equipamentos e profissionais e dificuldades para conseguí-los em diversos Estados. Mas a idade e as comorbidades influenciam muito, além da gravidade desta doença nova. “Às vezes, a gente vê um paciente até com melhora da função pulmonar com perspectiva de sair do tubo, aí ao longo do dia ele piora e não conseguimos tirá-lo do respirador”, afirma o médico do Ceará.

Desigualdade na rede pública e privada

Os dados da plataforma ainda desenham reflexos da desigualdade entre as redes pública e privada. Dentre as UTIs cadastradas, 35,1% dos pacientes da rede privada precisaram ser submetidos à ventilação mecânica enquanto 65,6% dos internados na rede pública precisaram ser entubados. “O paciente do hospital público costuma chegar um pouco mais grave, e a utilização de ventilação mecânica foi quase o dobro”, diz Ederlon Rezende. O volume de dependentes do sistema público é três vezes maior que do sistema de saúde complementar e, em alguns Estados, já há lista de espera por uma UTI. Em geral, segundo o médico, o paciente da saúde suplementar consegue chegar a um leito numa fase mais precoce da infecção. Enquanto isso, a literatura médica internacional indica que a entubação precoce dos pacientes com a covid-19 tem mostrado resultados melhores. A mortalidade de pacientes da rede pública com a covid-19 na plataforma da Amib ―tendo sido eles entubados ou não― é quase o dobro (52,8%) da privada (de 27,5%). Entre os entubados, a diferença é mais amena: 65,0% em leitos privados e 69,9% em públicos.

“O dado de mortalidade entre os pacientes entubados nas UTIs do Brasil é de 66%, melhor que o dado de Nova York. Lá foi 88%. Mas estamos olhando para UTIs estruturadas. Se olharmos para os leitos menos organizados, pode ser pior”, afirma Rezende. Nas últimas semanas, ele tem chamado a atenção que a força de trabalho de intensivistas no Brasil está próxima do limite e que muitos Estados já começam a abrir leitos com profissionais de outras especialidades e com problemas para conseguir todos os equipamentos. “Ouviremos muito governante dizer que abrirá leitos de UTI. Mas não adianta sem profissional qualificado”, chegou a dizer em uma entrevista ao EL PAÍS. “A gente está enfrentando como pode, mas é uma coisa que nos preocupa. Se a gente entrar no cenário de colapso do sistema, pode ser ainda pior. De novo insisto que essa mortalidade alta é por conta da gravidade da doença. Se olharmos os dados de onde a estrutura está precária, pode ser mais grave”, afirma.

Rezende explica que o Brasil já passou por uma epidemia séria, a da H1N1. Mas lembra que, embora este vírus fosse mais letal, a transmissibilidade dele era menor. “Na H1N1, você tinha dois ou três pacientes em uma UTI, agora você tem dezenas. Os intensivistas não conseguem se concentrar em cada paciente da mesma forma”, detalha. O médico intensivista, que também tem atuado na linha de frente do coronavírus, diz que a grande escala de pacientes torna o manejo deles mais complexo. E que a covid-19 tem exigido também um treinamento maior das equipes. Enquanto a principal complicação da H1N1 era a insuficiência respiratória ―e nos pacientes com este vírus havia uma dificuldade maior para serem entubados por conta do comprometimento dos pulmões―, o novo coronavírus traz novas dificuldades por trazer complicações sistêmicas além da pulmonar, como o comprometimento dos rins, o risco maior de trombose e o comprometimento até mesmo do sistema nervoso central em alguns casos. “H1N1 era uma doença muito mais no pulmão. A covid-19 é sistêmica”, explica Rezende.

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- O que fazer para se proteger? Perguntas e respostas sobre o coronavírus;

- Guia para viver com uma pessoa infectada pelo coronavírus;

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