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A difícil tarefa de combater o coronavírus em Manaus, onde metade da população vive em favelas

Aglomeração de moradias dificulta isolamento social e favorece disseminação da doença. Entre os dez Estados com maior incidência da covid-19, oito tem as maiores taxas de habitação precária

No Amazonas, mais de um terço dos domicílios ocupados estão em aglomerados subnormais; proporção supera 50% em Manaus.
No Amazonas, mais de um terço dos domicílios ocupados estão em aglomerados subnormais; proporção supera 50% em Manaus.Claudio Stenner

Primeiro vieram os calafrios, a dor no corpo e a febre. Depois, Maria Auxiliadora Lisboa, de 48 anos, já não sentia nem cheiro nem gosto. Diante da série de sintomas típicos da covid-19 presentes há alguns dias, resolveu procurar um hospital no dia 8 de maio. "Mas não o da comunidade. Ele está tão cheio que os médicos não conseguem te atender. Teve muita gente que me aconselhou a ficar em casa, a tomar um chá, fazer uma receita caseira. Mas só eu sabia o que estava sentindo, precisava de ajuda ", conta a desempregada que vive na favela Redenção, em Manaus. Um teste comprovou que ela era mais uma das mais de 25.000 pessoas infectadas no Amazonas pelo coronavírus, onde 1.620 óbitos já foram registrados. O Estado é o quarto com maior número de contágios no país.

O primeiro que fez ao voltar para a casa de dois cômodos, já com o diagnóstico da doença, foi combinar com o marido que um teria que dormir na sala/cozinha e outro no quarto para manter o isolamento. Poucos dias depois, ele também confirmou com um teste que tinha contraído o vírus. “Aqui ainda era mais fácil se isolar, porque somos só nós dois. Mas a vizinha da minha sogra, que mora também aqui no bairro, pegou coronavírus e tinha uma casa com vinte parentes. Todo mundo junto. Alguns pegaram a doença e a chefe da casa faleceu”, conta Maria Auxiliadora que hoje já se sente recuperada da doença.

Maria Auxiliadora Lisboa mora em uma favela em Manaus e foi diagnosticada com coronavírus no início de maio.
Maria Auxiliadora Lisboa mora em uma favela em Manaus e foi diagnosticada com coronavírus no início de maio.Acervo Pessoal

A maior parte da população de Manaus vive em condições semelhantes as de Maria Auxiliadora e os vizinhos, o que pode explicar parte da escalada da disseminação da doença na cidade. Dos 653.218 domicílios existentes na cidade, mais da metade (53,3%) estão nos chamados aglomerados subnormais ―mais conhecidos como favelas, invasões, palafitas e loteamentos― , segundo um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgado na última terça-feira. A capital amazonense apresenta a maior proporção de domicílios em favelas entre todas as capitais do país. O número preocupa já que essas moradias dificultam o isolamento social, possuem condições precárias de saneamento básico e favorecem a disseminação do vírus causador da covid-19. O Estado também é o que tem a maior proporção desses aglomerados, mais de um terço das residências (34,59%). Entre os dez Estados com maior incidência de contaminação pelo novo coronavírus, oito apresentam também as maiores proporções dessas moradias irregulares.

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Os dados sobre os aglomerados subnormais fazem parte de um levantamento que, geralmente, é feito para o Censo, que ocorreria este ano, mas acabou adiado pela dificuldade de se realizar pesquisas domiciliares durante a pandemia. “Mas antecipamos a divulgação desses dados para mostrar qual é a situação dos aglomerados subnormais em municípios e Estados, já que nessas localidades a população tem maior suscetibilidade ao contágio pela doença provocada pelo novo coronavírus, devido à grande densidade habitacional”, explicou o gerente de Regionalização e Classificação Territorial do IBGE, Maikon Novaes. A metodologia usada neste levantamento é diferente da do Censo, pois se baseia, entre outros métodos, em imagens de satélite para a contagem das residências precárias.

Jean Faria, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Amazonas, explica que alguns bairros da capital que começaram como invasões tem hoje casebres com até 10 pessoas morando em casas de três cômodos. “O que é um problema sério, como isolar essas pessoas caso se contaminem? Muitas dessas casas tem o banheiro fora e não são dotadas de redes de esgoto, a água chega precariamente. Essas regiões muitos densas com pouca urbanização ajudam a disseminar rapidamente a doença”, diz. Faria ressalta ainda que várias das ruas não possuem asfalto. “Elas não estão preocupadas se vão usar luvas, máscaras, elas estão preocupadas porque o lugar alaga. Nesse locais, é impossível passar uma ambulância em caso de emergência”.

Segundo a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, assim como em outras regiões do país os primeiros casos confirmados da doença no Estado foram de pessoas de classe mais alta que voltavam de viagem de locais com o vírus. No mês de abril, no entanto, a doença alcançou bairros mais populosos e as periferias. A disseminação da covid-19 fez a ocupação dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) atingir quase sua capacidade máxima no Estado e pressionou ainda mais o já debilitado sistema hospitalar. O serviço funerário entrou em colapso na capital. Nos cemitérios públicos, o sepultamentos passaram a utilizar valas coletivas por falta de espaço e coveiros, enquanto funerárias privadas esgotaram estoque de caixões.

No mês de abril, a capital do Amazonas registrou 1.582 mortes a mais que no mesmo período do ano passado. Com gargalo na testagem, poucos destes óbitos foram creditados à covid-19, ainda que os mortos tivessem sintomas da doença. O próprio prefeito, Arthur Virgílio Neto, reconheceu que várias pessoas estavam morrendo dentro de casa, sem qualquer assistência médica, e que deveriam ser vítimas do vírus. Nildo Lima, presidente da Central Única de Favelas (Cufa) do Amazonas, afirma que muitas pessoas de baixa renda estavam com receio de ir aos hospitais ao ter notícias do colapso do sistema de saúde da capital. “As pessoas estavam com medo de ir para os pronto-socorros. Alguns realmente não conseguiam ser atendidos. Muita gente morreu em casa sem se tratar, sem saber se era coronavírus”, explica.

Manaus tem pequena melhora

Nos últimos dias, no entanto, Manaus teve uma queda no número de enterros diários. De acordo com a prefeitura, houve também uma redução na taxa de acionamentos ao Samu. No Estado, a ocupação dos leitos de UTI deu uma pequena folga e era de 79% nesta segunda-feira. Mesmo diante de números melhores, o prefeito da capital fez um apelo à população para que sejam mantidos os cuidados preventivos e o respeito ao isolamento social, que está abaixo dos 50% no Estado. “Ainda não existe vitória de jeito algum. Não há nada a se comemorar a não ser uma pequena melhora”, disse Virgílio Neto.

Um pesquisa do Centro de Pesquisa Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) mostrou que na cidade de Manaus mais de 200.000 pessoas tiveram ou têm infecção pelo novo coronavírus. “O resultado da pesquisa aponta que apenas 11% da população tem, ou já teve, o novo coronavírus e a maioria é assintomática. Por outro lado, especialistas apontam que é necessário 50% da população se contaminar para chegarmos ao que chamam de imunização de rebanho, ou seja, ainda temos muita luta pela frente”, defendeu Virgílio Neto.

Interiorização da doença

Para Bernardino Albuquerque, professor da Universidade Federal do Amazonas e médico infectologista, depois de enfrentar uma disseminação grande na capital, o Estado sofre agora com a interiorização dos casos da covid-19. “Apesar de o Governo ter proibido o tráfico de passageiros em barcos que levavam a outros municípios distantes houve dificuldade de controle, o que não impediu a difusão para o interior. O problema é que o único local com UTI é Manaus. No interior há apenas unidades intermediárias para estabilizar o paciente. Mas os mais graves precisam ir para capital. E há municípios que você demora sete dias para ter acesso. Como a capital aguentará a própria demanda e a do interior?”,diz.

Outra preocupação é o avanço da doença entre os povos indígenas nas partes mais afastadas da Amazônia. “O Estado concentra a maior população indígena do país”, explica Albuquerque. Alguns em estado grave estão sendo levados de avião para as UTIs da capital. “O número de pacientes com covid-19 aumentou muito. Estamos fazendo mais voos, é a última oportunidade de salvar suas vidas”, disse à agência Reuters Edson Santos Rodrigues, médico pediatra que trabalha no transporte aeromédico no Estado do Amazonas. “Às vezes não chegamos lá a tempo, porque não podemos pousar à noite em aeródromos remotos sem luz”, disse o médico ao voltar à cidade de Manaus com um homem de 26 anos da etnia tikuna, que estava respirando através de um tanque de oxigênio a bordo do avião.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) informou na última segunda-feira que pelo menos 23 indígenas morreram em decorrência da covid-19. As vítimas estavam em terras indígenas remotas, 11 delas na região de fronteira com a Colômbia e o Peru.

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