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“Estamos assustados e fazemos o impossível para que a aldeia fique em casa”

Com o primeiro caso de coronavírus em uma indígena no Amazonas, aldeias próximas mudam rotina, endurecem regras e criam suas próprias medidas sanitárias para evitar o contágio

Rua esvaziada da aldeia Vila Betânia, onde vivem aproximadamente 5.000 indígenas da etnia Ticuna.
Rua esvaziada da aldeia Vila Betânia, onde vivem aproximadamente 5.000 indígenas da etnia Ticuna.Arquivo Pessoal
Beatriz Jucá

De sua casa ―uma das poucas com internet Wifi em uma aldeia indígena do Amazonas―, a professora Nedilsa Pereira acessava um dos boletins informativos que costuma acompanhar pelo celular, quando viu que o Brasil havia confirmado o primeiro caso de coronavírus em uma indígena na sua cidade, Santo Antônio do Içá. Naquele momento, entrou em choque. Era terça-feira (31 de março), e os cerca de 5.000 indígenas da etnia Tikuna que vivem na aldeia Vila Betânia, perto da fronteira com a Colômbia, já estavam em alerta porque, na semana anterior, um médico do Distrito Sanitário Indígena (DSEI) da região havia sido infectado, mas só apresentou sintomas e se afastou do trabalho um dia depois de atender a mais de uma dezena de pacientes da região. A primeira indígena confirmada com a Covid-19, uma agente de saúde de 20 anos, havia trabalhado com esse médico e é amiga de Nedilsa. Cerca de 70 de indígenas da região foram testados, mas apenas um caso foi confirmado até agora. Nedilsa conta que os parentes ficaram assustados, mas que o caso do médico já havia sido um alerta sobre o risco real de contágio e a necessidade de se proteger. E levou a aldeia Vila Betânia a mudar a rotina e criar suas próprias regras sanitárias.

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“A gente ficou em pânico, com medo, quando viu que essa doença já estava tão perto. Estamos assustados e fazemos o impossível para que a aldeia fique em casa”, diz Nedilsa. Ela conta que o isolamento social começou na Vila Betânia no dia 23 de março, dez dias depois que o Amazonas confirmou o primeiro caso da Covid-19 ―até o momento, o Estado registra 260 casos e sete mortes. Caciques, lideranças indígenas e professores da comunidade se reuniram e decidiram que, a partir daquele dia, os indígenas deveriam permanecer em casa. Proibiram a entrada de visitantes e comerciantes de fora, e o único porto pelo qual se entra na aldeia está constantemente vigiado. Os indígenas podem plantar e pescar, como sempre fizeram. Mas a tradicional atividade de venda de peixe e produtos agrícolas para a cidade foi suspensa. No máximo, 20 pessoas estão autorizadas a atravessar o rio e ir até a cidade para comprar alimentos por dia, sempre seguindo as precauções de higiene.

Indígena da etnia Tikuna, Nedilsa Pereira.
Indígena da etnia Tikuna, Nedilsa Pereira.

“A gente divulgou na boca de ferro pra ninguém andar na rua, que essa doença é muito mais perigosa pra gente”, conta Nedilsa. Ali, o medo de pegar doença do branco perpassa muitas gerações. Historicamente, os povos indígenas viram comunidades serem dizimadas pelo contato com doenças para as quais não tinham anticorpos. O próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, vem alertando sobre os riscos dessa população, ainda mais vulnerável ao novo coronavírus diante da falta de acesso deles a condições sanitárias básicas e das fragilidades do sistema de saúde indígena. Nesta sexta-feira, o ministro chegou a recomendar restrição mais dura nas aldeias e pediu que mesmo as instituições indigenistas bem intencionadas se abstenham de ir até elas durante a pandemia para reduzir a possibilidade de contágio.

A Aldeia Vila Betânia segue sendo assistida pelos profissionais de saúde ligados à Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) que vivem na própria comunidade. Os moradores de lá escutam as orientações deles e acrescentam a elas a suas próprias, como por exemplo um fumacê de um remédio caseiro que todas as noites é acendido na aldeia para combater o vírus. Também criaram um medicamento próprio para passar no corpo antes de sair de casa, caso seja necessário para alguma atividade essencial. E, na ausência de máscaras de tecido, produzem aparatos de cuia de coco para criar barreiras físicas. “Temos as nossas tradições e a nossa maneira de ver como são essas doenças. Doença assim já aconteceu anos atrás, nossos antepassados contavam. Quando surge doença assim que não tem remédio, na nossa aldeia os mais velhos vão encontrando um remédio pra se prevenir. Estamos fazendo a mesma coisa agora, com esse fumacê”, explica Nedilsa.

A nova rotina da aldeia

Mesmo com a memória viva sobre a devastação que as doenças de branco podem causar, Nedilsa diz que os Tikuna da Vila Betânia experimentam agora algo que nunca viveram: o distanciamento social. A rua mais movimentada da cidade, marcada por um grande fluxo de parentes, agora está vazia. Os jogos de futebol na comunidade, uma paixão dos mais jovens, já não acontecem mais. Tudo parece ter parado. “À noite, a comunidade fica toda estranha, com tudo deserto, sem ninguém”, narra. Na casa de Nedilsa, onde funcionava uma agência bancária express e a lan house da comunidade, o movimento também precisou parar. “Minha casa estava todo dia lotada, com pessoas acessando a internet. Tivemos que orientar os nossos clientes, até eles entenderem. Não foi fácil”, conta.

O impacto também é sentido pela ausência dos comerciantes e visitantes das aldeias vizinhas ou da cidade, que chegavam aos montes para fazer negócio. Esse tráfego agora está proibido. “Fica gente no porto aguardando pra ver quem entra e quem pode sair da aldeia”, diz Nedilsa. As regras discutidas internamente na comunidade ficaram ainda mais duras depois da confirmação da primeira indígena com Covid-19, na aldeia vizinha. “Combinamos que, se um for pescar, não tem problema. Um de nós pode ir pra sua roça, fazer o que já fazia. O problema é que a nossa população não pode sair da aldeia e ir pra cidade, porque é aí que está o perigo maior. Então tivemos que proibir”, diz a indígena.

A comunidade já começa a sentir os impactos da paralisação da atividade econômica, mas sabe que o risco do coronavírus para eles pode ser ainda maior, ainda mais diante do desmonte que vem sofrendo o sistema de saúde indígena. O DSEI Alto Solimões, que atende 237 aldeias de seis municípios da região, vem orientando que os povos indígenas evitem aglomerações e permaneçam em suas aldeias. O distrito informa que há ao menos 900 profissionais de saúde que vivem dentro dessas comunidades indígenas. A expectativa é de que 10.000 testes rápidos de coronavírus cheguem à região na próxima semana, para um controle maior dos profissionais. Enquanto isso, o trabalho de coleta de material e resultados está sendo feito pela Fundação em Vigilância em Saúde do Amazonas. Em todo o país, as aldeias não isoladas começam a impor maior restrição para entrada e saída das comunidades, o que já interfere no comércio dessas comunidades. Algumas etnias se organizam para receber doações por meio da Funai, que prepara a distribuição de cestas básicas para garantir segurança alimentar aos povos tradicionais.

Nedilsa ―ou Pucürana, seu nome Tikuna―tenta diariamente manter os parentes informados pelo que lê na internet. Por enquanto, a pajelança, principal ritual mantido na comunidade, está suspensa pelo menos em grupo. Os indígenas são orientados a evitar a ir até a casa dos pajés. “Orientamos que a vida continua, mas em casa, fazendo as artes e o artesanato, sem sair e sem receber visita”, diz a indígena. A grande festa da aldeia, uma pajelança tradicional feita sempre no dia 19 de abril, também foi cancelada. “É a grande festa pra nós, onde apresentamos nossas crenças e rituais, mas devido a essa pandemia, nem sabemos o que vai ser”.

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