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De Trotski a Marx, o discurso ideológico inflama os documentos oficiais da Funai de Bolsonaro

Fundação decide não priorizar o repasse de cestas básicas em áreas “invadidas” e cita “antropologia trotskista” para vetar visitas a esses locais. "Argumento ideológico” não tem base legal, diz jurista

Encontro de indígenas na aldeia de Piaracu, no Parque Indígena do Xingu, em janeiro.
Encontro de indígenas na aldeia de Piaracu, no Parque Indígena do Xingu, em janeiro.RICARDO MORAES (Reuters)
Beatriz Jucá

São constantes as menções do presidente Jair Bolsonaro a uma “ameaça comunista” ou mesmo ao “combate ao marxismo” no país, seja em tuítes, entrevistas ou lives. O presidente também coleciona declarações que vão de encontro aos povos originários —a mais recente delas quando disse, em uma transmissão no Facebook, que “cada vez índio é um ser humano igual a nós”—. O vocabulário anticomunista do presidente, porém, já não está restrito às redes sociais. Integra documentos oficiais da Fundação Nacional do Índio (Funai) e vira argumento para direcionar políticas públicas sobre a questão indígena. Citando Karl Marx e líderes como León Trotski, a fundação decidiu, por exemplo, impedir que seus servidores visitem áreas que são alvo de ações de retomada, expressão usada pelos indigenistas para se referir à ocupação de territórios que já pertenceram aos seus ancentrais. O mesmo argumento de que esses territórios estão "invadidos” virou critério do Governo para interromper a distribuição de cestas básicas a indígenas no Mato Grosso do Sul. Especialistas afirmam que o discurso ideológico que se estende aos documentos oficiais do Governo não tem base legal e explicita uma tentativa de retomar a visão integracionista da ditadura militar.

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ACOMPAÑA CRÓNICA: ECUADOR AMAZONÍA - GRAF3718. SÃO FELIX DO XINGÚ (BRASIL), 03/10/2019.- Fotografía de archivo fechada el 20 de septiembre de 2019, que muestra a dos niños indígenas de la etnia Xikrin mientras se bañan, en el río Bacaja (Brasil). Los territorios de las comunidades indígenas asentadas en la Amazonía y las áreas protegidas de esa extensa selva suramericana son claves en la protección de la biomasa como factor de lucha contra el cambio climático. EFE/ Fernando Bizerra ARCHIVO
Melhor, senhor presidente, que os índios se pareçam cada vez menos conosco

Desde o ano passado, o presidente Marcelo Augusto Silva Xavier vem determinando aos servidores da Funai que deixem de visitar locais “invadidos” pelos povos indígenas. A presença deles nos territórios é fundamental para a realização dos estudos técnicos exigidos nas primeiras etapas do processo de demarcação das terras, um direito previsto na Constituição, mas que enfrenta resistência histórica da União. A falta de solução aos conflitos por terra num contexto de desaceleração nas demarcações —reforçada pelo presidente Bolsonaro, ao dizer que não vai homologar um centímetro de terra indígena durante sua gestão— costuma influenciar as chamadas ações de retomada. O que a Funai tem feito é dizer que, diante dos seus recursos limitados, não mais enviará seus servidores para essas áreas. “O atual Governo, legitimado por 57 milhões de votos, não ratifica ou alimenta com recursos humanos ou materiais esse tipo de ação não civilizada que tem rendido à Funai condenações por danos promovidos pelos invasores”, argumenta a fundação em um de seus documentos.

A paralisação do trabalho nos territórios e o uso de expressões pejorativas com pouca clareza em vários despachos do órgão —como por exemplo tratar as terras ocupadas como “invadidas” e chamar as etnias indígenas de “tribos”— levaram o Instituto Socioambiental (ISA) a pedir explicações sobre quais comunidades se enquadrariam na classificação de “invasor” e quais as bases legais do órgão federal para tomar essa decisão. O questionamento feito pela Lei de Acesso à Informação gerou mais um documento oficial, no qual a Funai nega as ações de retomada e argumenta que elas partem do conceito de uma “antropologia de linha trotskista” e do “marxismo ortodoxo”. Segundo a fundação, a condição de invasor deve ser atestada pelas coordenações regionais com base no Código Civil, que considera invasor “todo aquele que turba ou esbulha a propriedade de outrem, com ou sem violência”.

“É um argumento puramente ideológico que não encontra qualquer base legal ou constitucional”, afirma o juiz André Augusto Bezerra, autor do livro Povos Indígenas e Direitos Humanos: direito à multiplicidade ontológica na resistência Tupinambá. Ele explica que o documento da procuradoria da Funai indica como terra indígena apenas os territórios demarcados enquanto essa definição, segundo a Constituição brasileira, é a de terras tradicionalmente ocupadas. “Quando se fala em retomada de terra, de ocupação de terras não demarcadas, não se pode falar de um movimento trotskista [corrente dentro do movimento comunista que preconiza uma revolução permanente]. Ao ocuparem esses territórios, os indígenas estão dando cumprimento à Constituição. E não há nada mais capitalista que isso”, afirma.

André Augusto ainda avalia que o uso do Código Civil como base pela Funai parte de um conceito de propriedade privada individual cuja aplicação não cabe aos povos indígenas. “Os indígenas não têm propriedade individual sobre aquelas terras, que são para uso coletivo deles. Oficialmente, essa propriedade é da União. Há um erro grave em definir isso a partir da prática de esbulho”, acrescenta. Para o juiz, o uso desse tipo de vocabulário em documentos oficiais “externa uma ideologia anacrônica do ponto de vista jurídico" e não tem amparo na legislação brasileira. No entanto, analisa, reflete um discurso do Governo que retoma entendimentos integracionistas e evolucionistas anteriores à redemocratização, durante a ditadura militar. “O Governo adota um discurso de assimilação dos povos que, do ponto de vista jurídico, tem base anterior à Constituição, quando se dizia que os povos indígenas deveriam ser integrados à sociedade branca”, diz.

A imputação de “viés ideológico” no exercício da antropologia e de outras áreas de humanas faz parte de uma guerra cultural latente no Governo Bolsonaro, mas não é exclusividade da atual gestão quando se trata das questões indígenas. “Quando o Congresso Nacional criou a CPI da Funai, a atuação de antropólogos na promoção de direitos desses povos já era tratada como algo suspeito e enviesado”, diz a antropóloga Daniela Alarcon, que estuda há dez anos as questões indígenas. O próprio relatório da comissão, informa, já falava em “internacionalismo”, “ameaça à soberania nacional” e “ditadura de antropólogos” no Brasil. “Há um elo fortíssimo entre esse processo que vinha se desenhando com a CPI e o que vivemos hoje, já que o atual presidente da Funai atuou na comissão. Nesse sentido, o que antes era uma atuação no âmbito da CPI, tentando criar condições para alterações legislativas e mudanças em políticas para reverter direitos, hoje passa a ser a atuação do executivo”, afirma. Desde o ano passado, a fundação tem substituído antropólogos por “profissionais de confiança” para atuar na demarcação de territórios.

Alarcon diz que, embora Bolsonaro tenha encampado um discurso de combate ao uso ideológico da administração pública em diversas áreas desde a campanha eleitoral, o fato de o Governo expressar oficialmente a negação das retomadas como ato social já é uma postura contraditoriamente ideológica. “Uma concepção racista também informa esses textos. Quando um parecer da Funai afirma que as retomadas de terras não existem e que são criações trotskistas de antropólogos, negam a atuação política dos povos indígenas. No período militar, já se falava disto: dos agitadores brancos que iam até as aldeias, como se os indígenas não fossem capazes de se constituir como sujeitos. Essa performance e essa retórica antiindígena são eficazes para a constituição desse grupo que está agora no poder”, finaliza.

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