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Ivete Boulos: “Os homens ainda são muito reprimidos a buscar ajuda após um estupro”

À frente do atendimento a vítimas de violência sexual do Hospital das Clínicas, médica fala dos traumas dos pacientes e critica as iniciativas para acabar com o direito ao aborto pós-estupro

A coordenadora do Navis, Ivete Boulos.
A coordenadora do Navis, Ivete Boulos.Luiza Sigulem

As pessoas costumam chegar falando baixo, quase sussurrando, ao conjunto de salas do 5º andar do Prédio dos Ambulatórios do Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde fica o Núcleo de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Navis). “É aqui que tratam daquele problema?”, perguntam algumas. Outras chegam em choque. São crianças, adolescentes, mulheres e homens em busca de ajuda para superar sequelas dos ataques sexuais que sofreram. Crianças pequenas nem sempre têm vestígios físicos. “Nesses casos, há um abuso de manipulação importante, mas sem deixar marcas. É a invisibilidade da violência”, afirma a infectologista Ivete Boulos, coordenadora do Navis. Homens, por sua vez, tendem a procurar o serviço apenas quando apresentam um trauma físico importante. Mulheres, de todas as idades, representam 82% dos pacientes do Navis, o que reflete a mais recente pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Pelo levantamento, das 66.041 vítimas de estupro em 2018 no país 55.726 eram mulheres.

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Chegam casos de gravidez pós-estupro. Quando a mulher opta pelo aborto previsto no Código Penal, é encaminhada para um hospital que realize o procedimento, com retorno para o Navis, para acompanhamento psicológico. Perplexa com as movimentações que visam um retrocesso, por meio da proibição total do procedimento ou da imposição de condições cruéis e desumanas antes da interrupção legal, a infectologista denuncia: “É uma exploração do sofrimento da mulher, que chega grávida de um estupro e vai ser chamada de assassina”.

Pergunta. Como é o perfil das pessoas atendidas pela equipe do Navis?

Resposta. Em torno de 82% são mulheres, de todas as idades. Dentro desse grupo, temos adolescentes e crianças. Recebemos casos agudos e crônicos. Pessoas que têm uma história recente. Ou até de décadas. O outro grupo corresponde aos meninos, aos adolescentes e aos homens. Atendemos todos, independentemente da orientação sexual.

P. É verdade que vocês observam as filas do Pronto-Socorro, na tentativa de detectar casos de abuso e de violência sexual?

R. Vamos dizer que fazemos blitz. Fazemos porque o pronto-socorro do Hospital das Clínicas é um mundo. Chega infartado, acidentado e pessoas que precisam ser reanimadas. No crime contra a dignidade sexual, ninguém chega gritando: “Sofri um estupro”. Em qualquer pronto atendimento, a violência sexual pode chegar como trauma físico. Tem a violência sexual, depois o agressor joga a pessoa no barranco, há tentativa de asfixia, várias situações. Quem socorre vai ver a facada, o politrauma ou as queimaduras. Nem sempre vê a violência sexual que é referida pelo paciente. Por isso ficamos muito atentos. Então a enfermagem vai periodicamente ver se tem alguém na fila. Dá para notar. Ela pergunta qual é o problema; se for violência sexual, ela já tira da fila e leva para o atendimento no Navis.

P. De onde vêm as pessoas que vão direto ao ambulatório?

R. Elas vêm de hospitais gerais e de unidades de saúde. A própria família também traz. E temos a busca espontânea. Essas pessoas chegam falando baixinho, olhando para o chão. No nosso ambulatório, perguntam: “É aqui que atende aquele problema”? A enfermagem acolhe. Podemos estar sobrecarregados, mas entramos numa sala, escutamos um pouco a pessoa, chamamos a enfermeira para providenciar a matrícula. Daí a pessoa colhe no laboratório os exames necessários, já começa o atendimento.

P. E as mulheres que sofreram violência sexual e chegam com uma gravidez indesejada?

R. O tempo é muito importante nessas situações. Isso porque nem sempre elas chegam com duas semanas de gestação. Às vezes chegam com um pouquinho mais. É interessante lembrar que, nos 17 anos de trabalho do Navis, tivemos em torno de vinte gestações por estupro. A maioria era jovem, que só tinha contado para a família depois que descobriu a gestação ou era ameaçada pelo agressor. Nenhuma teve atendimento inicial ou falha da anticoncepção emergencial. E elas nem precisariam procurar um serviço para tomar a pílula do dia seguinte. Poderiam ter comprado sem receita na farmácia.

P. Qual é o procedimento do Navis diante de uma gravidez pós-estupro?

R. Ouvir a mulher e jamais duvidar. As situações de violência são muito reais. Escrever de forma correta num prontuário. A maioria desses prontuários, dessas fichas, podem ser forenses. Examinamos a paciente e ela passa por uma confirmação da gestação com exames de sangue e de imagem. Quando o ultrassom confirma e aponta a idade gestacional, a decisão é dela. A maioria já chega chorando e dizendo: “Pelo amor de Deus, doutora, me ajude porque eu não quero filho dessa situação horrorosa”.

P. Nesses casos,vocês encaminham para um hospital que faça o aborto previsto por lei?

R. Imediatamente. Isso deve ser muito rápido. O Código Penal já prevê desde 1940 o direito de interromper uma gravidez depois de um estupro. Não há necessidade de Boletim de Ocorrência nem de autorização judicial. Confirmamos a gestação e o tempo gestacional e encaminhamos para um serviço sem que a mulher precise peregrinar por hospitais. Em geral encaminhamos para o Hospital Pérola Byington, com retorno para o nosso ambulatório. Avisamos à equipe do Pérola que estamos enviando uma paciente para o grupo de aborto pós-estupro. O problema é que estamos vivendo neste momento do país o fechamento do serviço em hospitais credenciados para fazer o aborto previsto em lei.

P. Há mulheres que preferem levar adiante uma gravidez pós-estupro?

R. Sim. Teve uma época em que atendemos mulheres do Congo, que tiveram de imigrar por causa de conflitos no país. Sofreram mais de um estupro durante o percurso migratório. Tivemos uma moça muito sofrida. Toda a família dela tinha sido assassinada. Ela sofreu três estupros até chegar para nós. E estava gestante. Nem sabia de qual estupro tinha engravidado. Ela encerrou a consulta dizendo assim: “Perdi toda a minha família. Essa é a possibilidade de eu voltar a ter uma família”. Optou pela gestação. Então encaminhamos para o pré-natal. Ela vinha mostrar a barriga e, até hoje, de vez em quando traz a bebê para a gente ver. Então, é uma relação de escolhas. Foi a escolha dela.

P. O que acontece com a mulher que está com uma gravidez indesejada de mais de 20 semanas? Vocês encaminham?

R. Com mais de vinte semanas não adianta encaminhar. Todos os serviços recusam. Caso a paciente não possa mais realizar o aborto e não queira ficar com a criança, ela faz o pré-natal. No pós-parto, caso seja a escolha da mulher, a assistente social orienta e a criança é levada para um sistema de adoção. Isso é preconizado em norma técnica pelo Ministério da Saúde.

P. E com relação às meninas, é preciso autorização dos responsáveis para interromper a gravidez?

R. Tivemos casos de adolescentes grávidas pós-estupro, algumas com conflitos familiares muito grandes, inclusive com componentes religiosos. A adolescente desesperada e a mãe dizendo que ela ia ter a criança. Então, orientamos essa mãe a procurar o Ministério Público, porque a adolescente de 13 a 16 anos tem que ser ouvida por um juiz. Deve-se considerar o poder de decisão dela.

P. A equipe precisa encaminhar algum tipo de denúncia ou notificação?

R. Há notificações que todo serviço de violência deve fazer. A notificação não é uma denúncia, mas uma informação à rede. Quando atendemos qualquer menor de 18 anos que sofreu violência sexual, precisamos informar (notificar) a Vara da Infância como violência sexual bem caracterizada. Mesmo em caso de suspeita podemos notificar também.

P. “Violência sexual bem caracterizada” é quando tem alguma marca física?

R. Não é só a marca física. Além dos dados físicos ocorrem as aquisições das infecções sexualmente transmissíveis. Tem criança aqui de oito anos com sífilis. Como essa criança adquiriu sífilis se não foi da mãe, pois seria transmitida durante a gestação ou na hora do parto? Tem criança de cinco anos com HIV que a mãe é negativa. Sífilis, gonorreia e HIV: se não adquiriu da mãe, no período neonatal, até se provar o contrário tem que se pensar em abuso sexual.

P. No que diz respeito às mulheres, há uma série de projetos de lei no país que querem o fim do direito ao aborto previsto por lei. Como vê esse cenário?

R. É muito grave, gravíssimo. Em 2017, nós já tínhamos sido surpreendidos por um projeto conhecido como cavalo de Troia, que visava impedir o aborto legal. O texto original, aprovado pelo Senado, aumentava a licença maternidade para mães de bebês prematuros. Na Câmara, incluíram uma alteração a ser feita na Constituição que estabelecia o direito à vida “desde a concepção”. Se leis como essas passarem, o aborto pós-estupro fica proibido. Agora estamos também muito preocupados. O próprio Conselho Federal de Medicina lançou uma resolução que diminui a autonomia da gestante.

P. Por não acreditar no relato da mulher?

R. Não é só descrédito. É a respeito de novas situações que estão aparecendo em nosso país, como protocolos sobre o nascituro, do direito à vida desde a concepção. Essa resolução do Conselho Federal de Medicina tira a autonomia da mulher. Se o médico achar que não é adequado fazer o aborto legal, ela não vai fazer. A resolução é contraditória. Começa dizendo que a mulher tem autonomia e mais adiante diz que o médico pode modificar a resolução dela. Ficamos perplexos, com esta e outras iniciativas, como os projetos de lei que questionam direitos da mulher.

P. O projeto do deputado estadual Gil Diniz, do PSL?

R. Sim. Foi apresentado na Assembleia Legislativa de São Paulo, em dezembro de 2019. Esperamos que não passe. No Congresso também há vários projetos nesse sentido. A bancada contra o aborto legal está sendo fortalecida. Tivemos uma manifestação recente, uma reza de 40 dias em frente ao Hospital Pérola Byington, constrangendo mulheres que já chegavam lá sofridas, buscando atendimento após uma violência sexual. Fizeram uma tenda com mulheres e homens de joelho, rezando, com fotografias de bebês dizendo “Não me mate”.

P. Qual é o impacto dessas restrições à saúde pública? Pode aumentar o número de abortos clandestinos?

R. Sim. O aborto inseguro é a quinta causa de morte materna no Brasil. Um problema gravíssimo de saúde pública, porque são as mulheres pobres, que não têm uma assistência à saúde, que vão fazer o aborto inseguro. O índice é dobrado em mulheres negras. Algumas morrem, outras podem ficar com problemas em relação à sua saúde sexual e reprodutiva para toda a vida. O número de abortos inseguros no Brasil é altíssimo. Está em toda a literatura científica, mas vem sendo contestado de forma absurda, como se fosse uma minoria. Pelos estudos feitos na Universidade de Brasília, pela antropóloga Debora Diniz, uma em cinco mulheres a partir dos 40 anos declara que já fez um aborto.

P. E o outro grupo atendido pelo Navis, os 18% de pacientes do sexo masculino?

R. Os homens ainda são muito reprimidos em relação a buscar ajuda após sofrer uma violência sexual. Às vezes sofrem uma violência de gangue, com mais de um agressor, e têm vergonha de vir para o serviço. Só procuram o serviço se tiverem um sangramento, um trauma físico importante. Eles ficam muito envergonhados.

P. Com os meninos ocorre o mesmo que as meninas, no sentido de o agressor ser alguém próximo da família?

R. No mundo inteiro, muitos trabalhos mostram que as taxas de abuso sexual de meninos e meninas até cinco ou sete anos são muito próximas quando o agressor está dentro de casa. Quando chega na pré-adolescência, as meninas chamam mais a atenção, mas os meninos também são muito abusados por parentes, por aquela pessoa querida da família, conhecida da escola, de ambientes religiosos. São pessoas em quem a família confia. Saem com a criança, levam para algum passeio. O agressor é o cuidador que se torna predador.

P. Como a criança reage a isso?

R. Com a criança muito pequena, que não tem noção de sexualidade, existe uma sedução. Então é tido como um jogo, um “segredo só nosso”. Nesses casos, raramente há penetração. Há um abuso de manipulação importante, mas sem deixar marcas. Se a criança contar e for examinada, o exame físico será normal. É a invisibilidade da violência. À medida que esta criança vai crescendo, ela percebe que aquilo não está certo e tem uma rejeição. Então esse jogo, esse “segredo”, começa a se tornar ameaça: “Se você contar, eu pego sua irmãzinha, eu mato a sua mãe”. Essas ameaças são muito fortes para uma criança. Ela poupa o sofrimento da família e deixa que isso aconteça, às vezes por muito tempo.

P. Pessoas de todas as classes sociais procuram o serviço?

R. Sim. A violência sexual não tem fronteiras. Ela compromete todos os estratos socioeconômicos e culturais, mas há condições sociais tão graves que as pessoas se tornam muito mais vulneráveis. Há situações que acontecem muito mais com as mulheres mais pobres, porque elas não contam com uma proteção melhor para si e para a sua família.

P. E os homossexuais?

R. Atendemos todos, independentemente da orientação sexual. Na guerra homofóbica às vezes é mais de um agressor. Além do trauma sexual, tem um trauma físico importante, pois os agressores estupram e batem. Tivemos o caso de uma menina que sofreu um estupro corretivo, como dizem os homofóbicos, por causa da orientação sexual dela. Deste estupro resultou uma gestação. Já as pessoas trans procuram pouco o serviço, o que chama a atenção, pois há relatos frequentes dos ataques que sofrem.

P. Como você avalia os desafios atuais do trabalho do Navis?

R. Há um trabalho integrado. E muito respeito pelo Navis, que também atende a família. Dá orientação. A sociedade culpa, diz que o estupro foi porque vestiu aquela roupa, estava em tal lugar, bebeu não sei o quê. A família também culpa. Isso é muito trabalhado na psicologia, para a pessoa recuperar a autoestima. Nenhuma psicóloga vai dar uma borracha para apagar a situação vivenciada, mas vai mostrar à pessoa que ela é capaz de superar. Explicamos: “Todos nós somos vulneráveis a passar por uma situação de violência sexual. Mas a culpa nunca é da vítima”.

Esta reportagem foi produzida com o apoio do Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos

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