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Ato do MPL cumpre trajeto em São Paulo, mas policiais usam truculência para deter garotas já rendidas

Quatro pessoas foram detidas no total, dois homens e duas mulheres, uma delas secundarista. Questionada, Secretaria de Segurança não havia respondido à reportagem sobre episódio

Manifestantes é detida após ato do MPL em São Paulo.
Manifestantes é detida após ato do MPL em São Paulo.TABA BENEDICTO (ESTADÃO CONTEÚDO)
Felipe Betim

Os atos do Movimento Passe Livre vêm mostrando os limites impostos ao direito da livre manifestação em São Paulo. O protesto desta quinta-feira foi, contudo, ligeiramente diferente dos últimos três: dessa vez, os cerca de 300 manifestantes que se concentraram por volta das cinco horas da tarde no centro da capital para protestar pela gratuidade do transporte público na cidade conseguiram terminar o trajeto de uma hora entre o terminal Parque Pedro II e a praça da Liberdade. No entanto, a Polícia Militar paulista, comandada pelo governador João Doria (PSDB), não abriu mão de usar sua força no momento da dispersão do ato, por volta das 19h45. Os manifestantes correram das bombas de gás lacrimogêneo, mas dois homens e duas mulheres acabaram detidos.

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Na rua Coronel Xavier de Toledo, no Vale do Anhangabaú, duas garotas identificadas como Maria Vitória e Maria Gabriela foram detidas com truculência por volta 20h. Elas gritavam que já estavam rendidas, mas, ainda assim, pelo menos quatro policiais homens apoiavam joelhos em cima delas, puxavam seus braços e usavam cassetetes. Pessoas ao redor gritavam, em vão, contra a ação.

Um rapaz, identificado como Vinicius, também foi detido nesse momento apesar de dizer que não estava no ato. Os policiais militares afirmaram que os três seriam levados para o Primeiro Distrito Policial, na Sé, sem alegar os motivos. Todos foram colocados em um porta-malas de camburão e acabaram sendo levados para o Segundo DP, no bairro do Bom Retiro. O delegado decretou a prisão em flagrante das duas garotas, acusadas de resistência e dano qualificado. Dormirão na cadeia e devem passar por audiência de custódia nesta sexta, segundo confirmou uma fonte da delegacia. Já Vinícius foi liberado e colabora como testemunha.

A repressão aos manifestantes começou quando um deles atirou um ovo no escudo de um policial do batalhão de choque, após o término do ato e de uma performance em que queimavam uma catraca embalada em papel na praça da liberdade. Nessa ocasião, em meio a ofensiva do choque —desta vez, os soldados estavam identificados pelo nome—, um manifestante identificado como Lucas acabou detido. Ele também foi levado para o Segundo DP, mas até a publicação deste texto ainda não estava claro quais acusações pesariam contra ele.

“É uma grande ilegalidade. Elas [as duas mulheres] estavam caminhando pela rua quando foram detidas. Por não estarem fazendo nada de ilícito, se negaram a responder à abordagem violenta dos policiais. Isso gerou um tensionamento, mas em nenhum momento responderam com violência. Pelo contrário, foram agredidas”, explicou o advogado Flavio Roberto Moura de Campos, que defende as duas jovens levadas ao Segundo DP. Segundo ele, elas demandaram o direito de falar com advogado, mas foram levadas para a delegacia, e depois presas, sem serem atendidas. “O delegado imputou a elas a prática do crime de dano porque uma pessoa, desconhecida por elas e pelos policiais, danificaram a fachada do Shopping Light. Mas não há uma prova, uma testemunha, uma gravação [indicado que foram elas]", prosseguiu Campos. "É uma ilegalidade muito grande, porque o delegado só tem como elemento de convicção a palavra dos policiais afetados pelo que eles chamam de resistência à prisão”, concluiu.

A reportagem enviou questionamentos à Secretaria de Segurança Pública do Estado, que em nota se limitou a confirmar que as quatro pessoas foram levadas ao Segundo DP, “três por depredação ao patrimônio e uma por agressão a um Policial Militar”.

O ato foi organizado pelo Movimento Passe Livre contra o aumento da tarifa de ônibus para 4,40 reais —o incremento foi de 10 centavos. A concentração teve início às cinco horas da tarde no terminal Parque Dom Pedro II, no centro da capital paulista. Após negociação com mediadores da PM, saíram às 18h20, passaram pela Sé, pelo vale do Anhangabaú e subiram de volta até a Liberdade. O trajeto levou uma hora e foi inteiro acompanhado pela PM, além de membros da defensoria pública e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Protestos marcados pela violência

O protesto desta quinta-feira foi o quarto organizado pelo MPL neste ano. E, até o momento, a atuação da polícia vêm sendo marcada por ilegalidades e truculência, segundo relatos jornalísticos e na avaliação de entidades de direitos humanos. No primeiro, realizado no dia 7 de janeiro, os agentes fizeram uso de gás de pimenta e cassetetes e detiveram mais de 30 manifestantes, que foram levados dentro de um ônibus para a 78º DP “para averiguação”, segundo relatou a Ponte Jornalismo. A legislação brasileira não contempla esse tipo de prática. Dois dias depois, em 9 de janeiro, a PM utilizou bomba de gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar manifestantes, atingindo inclusive crianças dentro da estação República de metrô, ainda segundo a Ponte. Na ocasião, os jornalistas Arthur Stabile e Lucas Martins, da Ponte e do Jornalistas Livres, foram enquadrados e revistados por policiais. Na manifestação de 16 de janeiro, agentes chegaram a arrastar mulheres pelo cabelo e pelo pescoço. Uma delas, a ativista Andreza Delgado, foi detida junto com outros nove manifestantes.

Um dia depois, as entidades Artigo 19, Conectas Direitos Humanos, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo (CONDEPE) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) divulgaram uma nota conjunta condenando “veementemente a violência policial empregada contra manifestantes e comunicadores que estão acompanhando os atos contra o aumento da passagem”. Também disseram ser “grave” o fato de que, somente nos três primeiros atos, “44 pessoas já tenham sido detidas de forma arbitrária, incluindo a prática de detenção para averiguação, que não é permitida pela legislação brasileira e internacional (segundo o art. 5º, LXI, da Constituição Federal e art. 7 do Pacto S. José da Costa Rica)”.

Como pano de fundo está o decreto 64.074/2019, editado por Doria em janeiro do ano passado, logo após assumir como governador de São Paulo. A medida exige que atos com mais de 300 pessoas sejam notificadas às forças policiais com no mínimo cinco dias de antecedência. Também determina que o trajeto seja decidido pelos órgãos de segurança pública e proíbe o uso de máscaras e de objetos “que possam lesionar pessoas e danificar o patrimônio público ou particular”. Grupos temem que a proibição de bastões acabe resultando também na proibição de bandeiras durante os atos. Na nota conjunta do dia 17 de janeiro, as entidades ainda afirmam que o decreto possui “dispositivos inconstitucionais e incompatíveis com os processos democráticos”, além de ter transformado o aviso prévio aos órgãos de segurança em “autorização estatal”.

As entidades também lembram que, na ocasião, organizações da sociedade civil e entidades do poder público acionaram as relatorias especiais das Nações Unidas (ONU) e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pedindo auxílio para “interpelar o poder público brasileiro e pedir que sejam adotadas medidas urgentes para remediar a situação, como a criação de um protocolo de uso da força transparente e o não uso de maneira desnecessária e desproporcional, a interrupção permanente da prática de detenções arbitrárias de manifestantes, o fim de práticas de vigilância e a imediata revogação do decreto”.

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