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Ex-presidente da Vale e mais 15 são denunciados por homicídio doloso na tragédia de Brumadinho

Ministério Público de Minas Gerais responsabiliza funcionários e empresas pelo rompimento da barragem que deixou 270 mortos. Vale e Tüv Süd são denunciadas por crimes ambientais

Protesto contra a mineradora Vale, em Belo Horizonte, no dia 20 de janeiro de 2020.
Protesto contra a mineradora Vale, em Belo Horizonte, no dia 20 de janeiro de 2020.WASHINGTON ALVES (Reuters)
Beatriz Jucá

Quase um ano após a barragem I da Mina do Feijão ruir em Brumadinho e matar 270 pessoas, chegou à Justiça a primeira denúncia contra os supostos responsáveis por uma das maiores tragédias ecológicas do Brasil. O ex-presidente da Vale, Fabio Schvartsman, foi denunciado juntamente com outras 15 pessoas por homicídio doloso duplamente qualificado, quando há indícios de que houve intenção de cometer o crime, e por uma gama de crimes ambientais. A mineradora Vale, responsável pela estrutura que colapsou, também foi denunciada por crimes ambientais, assim como a empresa de auditoria alemã Tüv Süd, que havia atestado a estabilidade da barragem que rompeu. Ao todo, o Ministério Público de Minas Gerais denunciou 11 funcionários da Vale e cinco da Tüv Süd nesta terça-feira.

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Há mais de três meses, os moradores de Barão de Cocais, em Minas Gerais, vivem sob tensão pelo risco de rompimento da barragem Sul Superior, que abastece a mina do Congo Soco. A cidade localizada a 100 quilômetros da capital mineira está em alerta desde fevereiro, quando as sirenes foram acionadas pela primeira vez pela Vale, responsável pela estrutura, e comunidades foram evacuadas. Pouco mais de um mês depois, as sirenes voltaram a soar indicando riscos, mas foi nos últimos dias que a tensão chegou ao ápice. O problema está no talude (um paredão de terra) na cava da mina, que se movimentava cerca de 10 centímetros ao ano, mas na última quarta-feira, passou a apresentar movimentação de 9,6 centímetros por dia. Caso o talude rompa por conta dessa intensa movimentação, pode provocar abalos sísmicos, um gatilho para o rompimento da barragem Sul Superior. Embora a Vale garanta estar tomando as medidas preventivas possíveis, o perigo iminente do rompimento tem alterado a rotina da cidade e afetados até mesmo a economia local.
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Durante entrevista coletiva na tarde desta terça-feira, autoridades de órgãos policiais e de fiscalização que integram a força-tarefa que se debruçou sobre o caso no último ano afirmaram que o crime não aconteceu apenas no dia 25 de janeiro de 2019, quando a barragem I rompeu e arrastou consigo um mar de lama. “[O crime] perdurou desde novembro de 2017 a 25 de janeiro de 2019. Neste período, percebemos que funcionários se utilizaram das empresas para promover uma gestão de riscos opaca”, disse o promotor de Brumadinho, William Garcia.

Conforme as investigações, a Vale instituiu uma espécie de “ditadura corporativa” e impôs à sociedade e ao poder público riscos de sua atividade enquanto omitia informações. Os investigadores afirmam que havia o que chamam de “caixa-preta” dentro da Vale, com informações sobre os riscos não só na Barragem I de Brumadinho, mas também de pelo menos outras nove estruturas da mineradora. “A Vale, com o apoio da Tüv Süd, produziu um acervo interno sobre a barragem I e outras diversas barragens que eram reconhecidas internamente como barragens em situação de risco inaceitável”, destaca William.

Segundo as autoridades, a Vale impôs à sociedade riscos que ela desconhecia, com o apoio da empresa que deveria realizar uma auditoria independente e assinar os laudos sobre a estabilidade dessas barragens. A força-tarefa informa que recolheu um volume robusto de provas do mecanismo de pressão da Vale contra as empresas de auditoria externa para assegurar a estabilidade de estruturas, ainda que estivessem em risco. O mecanismo para isso seria o de retaliação e recompensa. "As empresas de auditoria externa que não aceitavam entrar no conluio eram retaliadas e afastadas dos contratos”, afirma William. A Tüv Süd, conforme os investigadores, teria cedido às pressões da Vale e acabou recompensada por isso, se tornando protagonista na gestão de riscos da Barragem I. “Dessa forma, dentre outras tarefas executadas, foram emitidas declarações de condições de estabilidade falsas [pela empresa alemã], que tinham como objetivo servir de escudo para as atividades arriscadas da Vale”, afirma William.

Ainda não foram apontados exatamente quais os gatilhos que provocaram o colapso da barragem no dia 25 de janeiro do ano passado. O EL PAÍS procurou as duas empresas diretamente envolvidas na tragédia para comentar a denúncia do Ministério Público Estadual de Minas Gerais. Em nota oficial, a Vale disse estar “perplexa” com a denúncia apresentada nesta terça-feira. "Sem prejuízo de se manifestar formalmente após analisar o inteiro teor da denúncia, a Vale desde logo expressa sua perplexidade ante as acusações de dolo. Importante lembrar que outros órgãos também investigam o caso, sendo prematuro apontar assunção de risco consciente para provocar uma deliberada ruptura da barragem. A Vale confia no completo esclarecimento das causas da ruptura e reafirma seu compromisso de continuar contribuindo com as autoridades”, afirmou a mineradora em nota.

Já a Tüv Süd disse que “continua profundamente consternada pelo trágico colapso da barragem em Brumadinho” e disse estar comprometida para que os fatos sobre a tragédia sejam esclarecidos. “Continuamos oferecendo nossa cooperação às autoridades e instituições no Brasil e na Alemanha no contexto das investigações em andamento. Enquanto os processos legais e oficiais ainda estiverem em curso, e até que se apurem as reais causas do acidente de forma conclusiva, a TÜV SÜD não poderá fornecer mais informações sobre o caso”, afirmou a empresa, em nota. A Polícia Federal ainda está concluindo perícias em uma investigação paralela sobre o caso de Brumadinho. A ideia é que esse trabalho seja finalizado até junho, quando o Ministério Público Federal também deverá apresentar sua denúncia à Justiça.

As 16 pessoas físicas denunciadas por homicidio duplamente qualificado poderão pegar de 12 a 30 anos de pena, caso sejam condenadas pela Justiça. Esse tipo de crime tem um prazo de prescrição de 20 anos. Caso a Justiça aceite a denúncia do Ministério Público Estadual de Minas Gerais, essas pessoas também viram réus por crimes ambientais, que teriam uma pena mais branda. “Vamos trabalhar de forma firme, séria e serena para que não ocorra um esvaziamento na esfera judicial”, diz o promotor de Brumadinho.

Presidente da Vale foi afastado após a tragédia

Denunciado nesta terça por homicídio doloso, Fabio Schvartsman assumiu a presidência da Vale em 2017 com o lema “Mariana nunca mais”, em referência ao desastre na barragem do Fundão, que havia causado 19 mortes em novembro de 2015. Schvartsman acabou deixando o cargo cinco semanas após o desastre em Brumadinho. A decisão da mineradora aconteceu depois de os órgãos de investigação exigirem à empresa o afastamento dos quatro diretores e de uma dezena de outros funcionários com base nas “evidências obtidas até o momento” sobre o envolvimento deles no desastre. Naquele momento, os investigadores indicavam, com base em depoimentos e provas apreendidas, que havia um “conluio” entre a Vale e a Tüv Süd para maquiar a real situação da Barragem I. Durante as investigações, 11 funcionários da Vale chegaram a ser detidos e outros quatro da Tüv Süd foram alvo de busca e apreensão. Conforme as investigações, os laudos de estabilidade eram emitidos pela empresa alemã mesmo sem atingir o nível mínimo de segurança para que a empresa não perdesse futuros contratos com a mineradora.

Nos bastidores, as duas empresas denunciadas travaram uma guerra para tentar descolar a própria imagem da responsabilidade pela maior tragédia ecológica do Brasil. De um lado, funcionários da empresa de auditoria relatavam pressões da mineradora para que assinassem os laudos de estabilidade da estrutura mesmo quando eram identificados riscos. Do outro, a Vale argumentava que tinha mais pressa para resolver anomalias detectadas na leitura de piezômetros do que a Tüv Süd. A simbólica disputa de narrativa entre as empresas estão nos trechos de depoimentos à Polícia Federal, documentos internos e e-mails tornados públicos pelos órgãos que investigam a tragédia.

Desde a tragédia em Brumadinho, a veracidade dos laudos de estabilidade foi colocada em xeque e um clima de medo se espalhou entre as comunidades que viviam próximo a essas estruturas. As fiscalizações das barragens de mineração no Brasil ficam a cargo da Agência Nacional de Mineração (ANM), que historicamente lida com problemas como o baixo orçamento e a quantidade insuficiente de servidores para realizar as vistorias dessas estruturas. Em novembro do ano passado, a autarquia do Governo Federal concluiu relatório técnico sobre o histórico da barragem do complexo Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, e afirmou que a Vale não seguia o rito legal de reportar as informações de segurança com a devida veracidade ao órgão, que atuava na ocasião com apenas oito fiscais. “Se a ANM tivesse sido informada corretamente, poderia ter tomado medidas cautelares e cobrado ações emergenciais da empresa, o que poderia evitar o desastre”, afirmou a ANM no relatório.

Diante de tragédias como a de Brumadinho, o Brasil e outros países ainda têm o desafio de fazer com que grandes corporações, com receitas muitas vezes superiores a PIBs, respeitem os direitos humanos e sejam punidas por suas violações. De maneira geral, as legislações, os tratados e as convenções focam na penalização de Estados e indivíduos.

Veja as pessoas denunciadas pela tragédia em Brumadinho

Vale:

 

1. Fabio Schvartsman (diretor-presidente);

2. Silmar Magalhães Silva (diretor do Corredor Sudeste);

3. Lúcio Flavo Gallon Cavalli (diretor de Planejamento e Desenvolvimento de Ferrosos e Carvão);

4. Joaquim Pedro de Toledo (gerente-executivo de Planejamento, Programação e Gestão do Corredor Sudeste);

5. Alexandre de Paula Campanha (gerente-executivo de Governança em Geotecnia e Fechamento de Mina);

6. Renzo Albieri Guimarães de Carvalho (gerente operacional de Geotecnia do Corredor Sudeste);

7. Marilene Christina Oliveira Lopes de Assis Araújo (gerente de Gestão de Estruturas Geotécnicas);

8. César Augusto Paulino Grandchamp (especialista técnico em Geotecnia do Corredor Sudeste);

9. Cristina Heloíza da Silva Malheiros (engenheira sênior junto à Gerência de Geotecnia Operacional);

10. Washington Pirete da Silva (engenheiro especialista da Gerência Executiva de Governança em Geotecnia e Fechamento de Mina);

11. Felipe Figueiredo Rocha (engenheiro civil, atuava na Gerência de Gestão de Estruturas Geotécnicas).

 

Tüv Süd:

 

1. Chris-Peter Meier (gerente-geral da empresa);

2. Arsênio Negro Júnior (consultor técnico);

3. André Jum Yassuda (consultor técnico);

4. Makoto Namba (coordenador);

5. Marlísio Oliveira Cecílio Júnior (especialista técnico).

 


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