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Os 40 anos de ‘London Calling’: como o The Clash mudou o rock para sempre e, de quebra, deu voz aos derrotados

O álbum clássico da banda punk britânica se mantém no imaginário coletivo não só por ser um dos mais bem avaliados de todos os tempos, mas também porque suas letras voltam a ser de uma raivosa atualidade depois da vitória de Boris Johnson

Da direita para a esquerda, Nicky Headon (bateria), Mick Jones (guitarra), Paul Simonon (baixo) e o líder da banda, Joe Strummer (guitarra e voz). O The Clash em Nova York em 1978.
Da direita para a esquerda, Nicky Headon (bateria), Mick Jones (guitarra), Paul Simonon (baixo) e o líder da banda, Joe Strummer (guitarra e voz). O The Clash em Nova York em 1978.Foto: Getty

Corre o ano de 1979. A conservadora Margaret Thatcher acaba de tomar posse como primeira-ministra do Reino Unido. Em Downing Street, a mulher conhecida como Dama de Ferro aplicará uma agenda de privatizações e cortes sociais. Enquanto isso, um esfarrapado que tem um sotaque meio escocês como herança materna desfila pelos palcos do país com um adesivo da Frente Sandinista de Libertação Nacional na guitarra e a mensagem: “Nicarágua, um povo em luta”. Quase uma evocação da frase “esta máquina mata fascistas” que o lendário músico folk Woodie Guthrie exibia em seu instrumento.

‘London Calling’ funciona como obra unitária porque tem um tema principal. Esse tema, como não podia deixar de ser em seu contexto social, é a derrota, e os protagonistas das canções são os derrotados

O esfarrapado em questão, o cantor e guitarrista Joe Strummer (Ancara, Turquia, 1955−Somerset, Reino Unido, 2002), que às vezes ousa exibir também camisetas provocadoras do grupo armado alemão Fração do Exército Vermelho, não passa por seu momento mais próspero. Embora a banda que ele lidera, The Clash, seja um dos pilares da explosiva cena punk britânica, está muito longe de ter o sucesso popular necessário para garantir sua subsistência econômica. Também não há indícios de que o próprio movimento vá sobreviver comercialmente, e Thatcher parece encarnar a representação material de sua derrota.

Nesse ambiente desalentador, Strummer e os outros componentes do The Clash −o também guitarrista Mick Jones (Londres, 1955), o baixista Paul Simonon (Brixton, 1955) e o baterista Topper Headon (Kent, 1955)− decidem apostar tudo ou nada. Depois de dois discos essenciais para o gênero, The Clash (1977) e seu sucessor Give ‘Em Enough Rope (1978), a banda decide gravar um álbum duplo com 19 canções muito além dos limites da etiqueta punk. E com um lançamento em datas especiais, para que as pessoas possam presentear seus entes queridos com o disco, como brincaria Jones, o guitarrista, em declarações à Trouser Press: “É como nosso recopilatório de ‘20 Grandes Sucessos’. Sabíamos que ia sair no Natal, por isso nós o preparamos para poder competir com os discos de ‘20 Grandes Sucessos’ dos outros grupos”.

O álbum, uma mistura elaborada e inimaginável de seu característico rock combativo com a canção tradicional americana, reggae, ska e world music, foi um sucesso mundial, que catapultou o grupo e o colocou entre os mais influentes do século XX. Seu lançamento completa 40 anos neste sábado. Seu título: London Calling.

O peso e a influência do terceiro trabalho do The Clash alcançam gerações. Tom Morello, guitarrista do Rage Against the Machine e do Audioslave, disse sobre o disco à revista Classic Rock em 2016: “Uma semana depois de ouvi-lo pela primeira vez, escrevi a primeira canção política da minha vida. O The Clash me impulsionou a fazer música com conteúdo político e a assumir uma posição ideológica”. Embora seja difícil saber se a banda decidiu premeditadamente se afastar do estilo punk ao considerá-lo esgotado, o que é evidente ao ouvir London Calling é que não foram abandonados seus princípios básicos, da forma como eles os entendiam. Ou seja: rebeldia contra o status quo, rejeição de todo dogmatismo, horizontalidade e, é claro, inequívocas e contundentes abordagens de esquerda.

No nível musical, de fato, estavam empreendendo um caminho que também percorreriam outros colegas de sua geração; sem ir mais longe, John Lydon −antes conhecido como Johnny Rotten−, ex-líder da outra grande banda emblemática daquele momento, os Sex Pistols, também estava explorando fusões de gêneros com o inovador Public Image Ltd. Mick Jones analisa da seguinte forma, em declarações citadas pela revista Long Live Vinyl: “O punk estava ficando mais e mais estreito, como se estivesse concentrado em um canto. Pensamos que podíamos fazer qualquer tipo de música”. Era a hora do pós-punk.

Joe Strummer trocando a camiseta com alguém do público em um show do The Clash em 1977.
Joe Strummer trocando a camiseta com alguém do público em um show do The Clash em 1977.Foto: Getty

Por outro lado, também havia algo de ponto culminante. Não por acaso, o The Clash vinha de uma turnê pelos Estados Unidos na qual tinha escolhido como companheiros de palco artistas tão aparentemente distantes de seu som como Bo Diddley (pioneiro do rock and roll clássico), a lenda da música negra Screamin’ Jay Hawkins (que se apresentava dentro de um caixão) e a mais lisérgica banda rockabilly da história, The Cramps.

Seu interesse tampouco era passageiro. Pelo menos Joe Strummer, com sua banda anterior, a protopunk The 101ers, já tinha se atrevido a fazer versões ao vivo de composições tão heterodoxas como o clássico popular negro Junco Partner, Out of Time (The Rolling Stones) e Gloria (Van Morrison). De fato, em uma das páginas do livro The Clash (2008, Global Rythm Press), que reúne textos assinados por todos os membros da formação clássica, Strummer admitiu ter se esforçado para “desaprender” o que sabia sobre rock clássico quando explodiu o movimento punk: “Foi como voltar ao início, ao ano zero. Parte do punk consistia em você se desprender de tudo que conhecia antes. [...] Tínhamos de nos desfazer de nossa maneira de tocar em uma tentativa febril de criar algo novo”.

Para explicitar em London Calling a nova aliança entre a tradição americana e os mesmos punks que, apenas dois anos antes, tinham composto uma música como I’m So Bored With the USA (“estou tão entediado com os EUA”), foi escolhida uma foto do baixista Paul Simonon destroçando seu instrumento, em uma capa desenhada com a estética, as cores e a tipografia do disco estreia de Elvis Presley.

Com ecos de ópera rock, London Calling não é, evidentemente, um álbum que apresente uma história definida, mas sem dúvida funciona como obra unitária, porque tem um tema principal. Esse tema, como não podia deixar de ser em seu contexto social, é a derrota, e os protagonistas das canções são os derrotados.

O discurso de ‘London Calling’ continua tão vivo como no primeiro dia. O partido de Margaret Thatcher conseguiu esta semana, com Boris Johnson à frente, seu melhor resultado eleitoral desde os tempos de... Margaret Thatcher

Pelas letras (majoritariamente de Strummer, mas também com contribuições notáveis de Mick Jones, como é o caso de Train in Vain, e Paul Simonon, responsável pela emblemática The Guns of Brixton) circulam figuras marginais, bandidos e heróis de rua: desde o Jimmy Jazz que é procurado pela polícia e de quem ninguém dá nenhuma pista, até os rude boys (Rudie Can’t Fail), como eram denominados os guetos de jovens de origem jamaicana que viviam no Reino Unido e que frequentemente eram vítimas de xenofobia e perseguição policial.

A própria faixa que abre o disco e lhe dá título, London Calling, é uma referência aos boletins radiofônicos (“Londres transmitindo…”) feitos durante os bombardeios alemães à capital britânica em 1940 e 1941, e se enquadra em um clima de razoável pânico nuclear depois do acidente na usina de Three Mile Island, na Pensilvânia, no início de 1979. Nesse cenário apocalíptico, a letra também cita a brutalidade das forças de segurança e até mesmo o risco de transbordamento do rio Tâmisa, que ameaçava inundar o centro de Londres. No verso “phony beatlemania has bitten the dust” (“a falsa beatlemania comeu poeira”), Strummer parece apresentar o primeiro dardo envenenado da obra: a metáfora do fracasso de uma geração que acreditou ser capaz de sonhar com um mundo distinto, mas estava tendo de se resignar a contemplar sua guinada autoritária. A subcultura dos rude boys acabaria se popularizando com o ska, sua maneira particular de dançá-lo e sua releitura das velhas roupas de gângster.

No punk, no entanto, a derrota está sempre associada à resistência, por mais fútil que esta seja. As classes populares que tentam avançar contra todas as probabilidades protagonizam a emocionante e enérgico I’m Not Down, a história de alguém que a vida golpeou de todas as formas, mas continua de pé; ou, principalmente, a melancólica Lost in the Supermarket, uma delicada composição em que Strummer, como revelou em uma gravação divulgada no documentário comemorativo Making of London Calling: The Last Testament (2004), procurou descrever a infância de seu colega de banda Mick Jones, que cresceu em um andar térreo da periferia de Londres com sua mãe e sua avó. Jones cantou a música a pedido de Strummer, que a definia como “uma história de superação”.

Mick Jones não foi a única pessoa próxima que serviu de inspiração para Joe Strummer: o vocalista também teve tempo de dedicar uma canção ao seu produtor, Guy Stevens: The Right Profile, talvez a faixa mais extravagante do álbum, e aparentemente um tema que zomba dos conhecidos problemas de Montgomery Clift com o álcool. Stevens não só enfrentava problemas igualmente graves (de fato, a CBS preferia não contar com ele, mas acabou cedendo por sua amizade com Paul Simonon), como tinha uma disciplina de trabalho excêntrica: há fotos das sessões de gravação onde ele é visto jogando cadeiras para, em teoria, criar uma atmosfera suficientemente tensa que desse às músicas a força de que precisavam. Johnny Green, um dos assistentes da banda, descrevia o poder de Stevens da seguinte forma: “Seu mundo estava queimando e ele queria atiçar as chamas”.

Capa do disco ‘London Calling’, com a foto de Paul Simonon batendo seu baixo no chão.
Capa do disco ‘London Calling’, com a foto de Paul Simonon batendo seu baixo no chão.

Guy Stevens morreu apenas dois anos depois da gravação de London Calling, por uma overdose de medicamentos. O The Clash lançou em 1982 uma canção dedicada à sua memória, Midnight to Stevens.

Mas o que transforma o álbum em uma obra-prima talvez seja o nítido diálogo existente entre suas mensagens políticas e o som de suas canções. London Calling tem uma vocação aglutinadora e internacionalista, algo que se reflete igualmente na assimilação de culturas musicais heterogêneas e no recurso a temáticas como a de Spanish Bombs, que traz o testemunho romântico dos brigadistas estrangeiros que viajaram para a Espanha para defender a democracia e a República na Guerra Civil. Escrita em um registro próximo ao de observação, a canção entrelaça passagens do conflito, como o assassinato do poeta Federico García Lorca nas mãos dos franquistas, com o amor condenado ao fracasso entre uma mulher e um miliciano estrangeiro que se despede arranhando um desajeitado castelhano: “Yo te quiero y finito, yo te acuerda, oh, mi corasón” −na tentativa de dizer que a ama infinitamente.

Algo parecido ocorre no hino Clampdown, dedicado aos jovens rebeldes que lutam contra a ordem estabelecida, que inclui uma referência aos movimentos socialistas emergentes naquele momento na América Latina: a menção em espanhol aos “presidentes” malvados que procuram restringir direitos civis.

London Calling foi incluído entre os dez melhores álbuns do mundo inteiro (em sexto lugar) nas duas votações organizadas pela revista americana Rolling Stone em 2003 e 2012, das quais participaram cerca de 300 artistas, jornalistas e profissionais da indústria. Segundo o agregador sueco de informações Acclaimed Music, o maior banco de dados de críticas musicais, é também o oitavo disco mais bem avaliado de todos os tempos e o primeiro de uma banda de punk-rock. Vendeu dois milhões de cópias.

London Calling também rendeu ao The Clash o respeito de muitos que haviam desprezado o grupo, como o crítico Charles Shaar Murray, da New Musical Express, que não teve remédio a não ser desdizer as palavras que tinha pronunciado três anos antes sobre o grupo: “São uma banda de garagem e deveriam voltar para ela o quanto antes, preferivelmente com a porta fechada e os motores ligados”.

Sua tardia data de lançamento também motivou polêmicas bibliográficas: por ter sido editado em 14 de dezembro de 1979, deixou obsoletas muitas listas dos melhores álbuns dos anos 70 que estavam sendo divulgadas, precipitadamente, pela crítica musical. Já veículos de comunicação como a Rolling Stone o nomearam diretamente como melhor álbum da década seguinte, tomando como referência seu lançamento nos Estados Unidos, que ocorreu em janeiro de 1980. Note-se que, segundo o Dicionário Pan-Hispânico de Dúvidas, uma década começa com um ano terminado em 1 e termina com outro terminado em 0, de modo que em 1980 o disco continuava sendo, tecnicamente, dos anos 1970.

Beatrice Behlen, curadora da exposição comemorativa sobre London Calling que o Museu de Londres abriga atualmente até abril de 2020, diz ao EL PAÍS a respeito do disco: “Muitas coisas continuam a se destacar, desde a amplitude dos estilos musicais que confluíram em seu som até a forma como as letras refletiram uma série de temas da história da cidade que têm ressonância hoje, além da estreita relação entre a banda e seus colaboradores” −uma referência às partidas de futebol que o grupo jogava contra os técnicos do estúdio nos intervalos das gravações, para relaxar. Entre os objetos da exposição não chega a estar a bola usada nesses jogos, mas sim o desventurado baixo de Paul Simonon que aparece na célebre capa.

Joe Strummer, Paul Simonon e Mick Jones em um show do The Clash em Londres em 1979.
Joe Strummer, Paul Simonon e Mick Jones em um show do The Clash em Londres em 1979.Foto: Getty

O The Clash conseguiu manter um grande nível de vendas nos trabalhos seguintes: embora Sandinista! (1980) não tenha alcançado as mesmas cifras ao longo do tempo, na época vendeu tão bem quanto London Calling, e em 1982 Combat Rock (que trazia clássicos instantâneos da banda como Should I Stay or Should I Go e Rock the Casbah) foi um sucesso ainda maior.

Depois desse último disco, o bateria Topper Headon foi expulso da banda por Strummer devido ao seu vício em heroína, sendo seguido meses depois por Mick Jones. Os músicos conseguiram retomar a amizade e em 2002 o guitarrista concordou em voltar a interpretar em um show vários temas do The Clash com o grupo de Strummer, The Mescaleros. Não houve tempo para nada mais: em dezembro daquele ano, Joe Strummer morreu repentinamente em consequência de uma doença do coração não diagnosticada.

O discurso de London Calling, no entanto, continua tão vivo como no primeiro dia. Já não temos o pânico nuclear daquela época, mas sim a crise climática. O partido de Margaret Thatcher conseguiu esta semana, com Boris Johnson à frente, seu melhor resultado eleitoral desde os tempos de... Margaret Thatcher. E os imigrantes voltam a estar no centro do alvo no Reino Unido.

Durante anos, o The Clash representou a alternativa social e comprometida diante do niilismo destrutivo e orgulhosamente superficial dos Sex Pistols. No entanto, 40 anos depois, parece pertinente perguntar: e se realmente não havia futuro?

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