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Os países bálticos, a grande ‘lavanderia’ de dinheiro russo na UE

Europol e outras organizações apontam a fragilidade dessas antigas repúblicas soviéticas após um escândalo que revelou a lavagem de mais de 200 bilhões de euros só na Estônia

Dois operários retiram o cartaz do Danske Bank na filial de Tallin (Estônia), em 5 de outubro de 2019.
Dois operários retiram o cartaz do Danske Bank na filial de Tallin (Estônia), em 5 de outubro de 2019.Peti Kollanyi (Bloomberg)

Estônia, Letônia e Lituânia eram parte da União Soviética (URSS) até seu colapso, em 1991. Em seus portos atracavam submarinos soviéticos, suas florestas escondiam usinas nucleares, e em seus hotéis à beira do mar Báltico veraneava a cúpula do Partido Comunista. Treze anos depois, quando a decadência engolia tudo, estas três repúblicas passaram a integrar a União Europeia (UE). Com esta guinada para o Ocidente, afastaram-se do passado comunista, mas neste ano de 2019 a sombra da Rússia voltou a se estender sobre as repúblicas bálticas —especialmente a Estônia—, desta vez para transformá-las em cenário do maior caso já revelado de lavagem de dinheiro russo na Europa. Uma máquina que deu aparência legal a mais de 200 bilhões de euros (906 bilhões de reais) através de filiais de bancos nórdicos. “É imenso”, afirma Maira Martini, pesquisadora da ONG Transparência Internacional (TI), em uma conversa telefônica sobre o caso. A cifra representa mais de sete vezes o PIB da Estônia.

No caso de Danske Bank, seus dirigentes em Tallin pareciam estar cegos e não transmitiam os indícios da fraude ao supervisor nacional Maira Martini, experiente em Transparência Internacional

Uma fraude gigantesca que em 25 de setembro levou meia centena de policiais e voluntários a revirarem as florestas ao redor de Pirita, na periferia de Tallin, a capital estoniana. Eles buscavam um dos banqueiros mais relevantes do país (de 1,3 milhão de habitantes), desaparecido 48 horas antes. Aivar Rehe, de 56 anos, tinha saído dois dias antes de sua casa sem carteira nem celular. Nunca mais retornou, e naquela fria manhã de outono a polícia encontrou seu cadáver nas imediações de sua casa, sem sinais de violência. O fato —tratado como um suicídio, e sobre o qual as autoridades decidiram não abrir uma investigação— chocou o país e foi noticiado na mídia internacional. Por que tanta expectativa?

Rehe era o presidente da filial do banco dinamarquês Danske Bank na Estônia e virou uma peça fundamental, talvez a última, para lançar luz sobre o maior escândalo de lavagem de dinheiro russo na UE. “A filial [do Danske Bank] operava uma carteira enorme de cidadãos não residentes [estrangeiros] que realizavam um volume considerável de pagamentos”, afirma um relatório da TI de agosto de 2018, no qual estima em 35% os lucros da filial geradas majoritariamente por clientes russos apenas em 2012. “Isto deveria ter chamado a atenção das autoridades supervisoras”, mas “o banco nunca fez o trabalho de denunciar a origem suspeita das transações”, aponta Martini, autora do relatório.

A polícia busca o corpo de Rehe em 24 de setembro de 2019, na periferia de Tallin.
A polícia busca o corpo de Rehe em 24 de setembro de 2019, na periferia de Tallin.Mihkel Maripuu

Apesar das várias investigações da ONG centradas na corrupção, não houve levantamentos oficiais até 2018, ano em que o Danske Bank se viu obrigado a admitir que entre 2007 e 2015 foram feitas “transações suspeitas” para suas filiais na Estônia num valor total de 200 bilhões de euros. Uma quantia equivalente ao PIB da Nova Zelândia ou do Qatar. Rehe, numa entrevista meses antes de morrer, disse se sentir “responsável”, mas não chegou a ser indiciado. “O banco claramente não cumpriu sua responsabilidade. É decepcionante e inaceitável”, afirmou o presidente da instituição, Ole Andersen, em um comunicado de setembro de 2018. A entidade reconheceu também que “não há dúvida de que os problemas relacionados com a filial estoniana foram muito maiores do que o previsto”.

Diante dessa confissão por parte do Danske Bank, as autoridades estonianas e dinamarquesas (e inclusive as da UE e dos EUA) iniciaram suas próprias investigações, que provocaram a demissão do Thomas Borgen, então à frente da instituição com sede em Copenhague. Também renunciaram outros nove diretores. “Está claro que o Danske Bank não cumpriu sua responsabilidade no caso de uma possível lavagem de dinheiro na Estônia. Lamento profundamente o ocorrido”, afirmou o executivo em um sóbrio comunicado, no qual admitiu sua “responsabilidade” e afirmou ter a certeza de que “o correto” era pedir demissão. O banco perdeu a metade do seu valor de mercado em apenas um mês, entre fevereiro e março de 2018.

Aivar Rehe, diretor da filial estoniana do Danske Bank, em março de 2019.
Aivar Rehe, diretor da filial estoniana do Danske Bank, em março de 2019.Tairo Lutter (Efe)

O Projeto de Denúncia da Corrupção e do Crime Organizado (OCCRP, na sigla em inglês), a organização que revelou o escândalo e que tem grande penetração no Leste Europeu, fez uma investigação que mostrou como o dinheiro entra nestas lavanderias “através de um conjunto de companhias-fantasmas criadas na Rússia, que existem só no papel e cuja propriedade não pode ser rastreada”. Como aqui não se aplica o sigilo bancário, as instituições “têm a obrigação de conhecer e identificar a procedência do dinheiro que entra em suas contas”, acrescenta Martini. No caso do Danske Bank, seus dirigentes em Tallin pareciam estar “cegos” e não transmitiram os indícios sobre a origem suspeita do dinheiro ao supervisor nacional, insiste. Contatado várias vezes, Kilvar Kessler, o supervisor bancário estoniano, recusou-se a falar com este jornal.

São quatro os bancos nórdicos envolvidos em casos de lavagem de dinheiro de procedência duvidosa nos países bálticos

A gigantesca bola de neve da lavagem de dinheiro foi crescendo até salpicar também a Suécia. Brigitte Bonnesen, presidenta do Swedbank, apresentou sua demissão há alguns meses por outro caso de lavagem de dinheiro russo nas suas filiais bálticas, estimado em 5,5 bilhões de euros (24,9 bilhões de reais), o que provocou uma desvalorização de 38% nas ações da entidade, segundo a Bloomberg. E em 27 de novembro outro banco sueco, o SEB Bank, admitiu em um relatório citado pela imprensa nórdica que em sua filial na Estônia lavou 26 bilhões de euros (117,8 bilhões de reais) entre 2005 e 2017. Por causa dos rumores que cercaram essa última investigação, as ações do SEB Bank caíram 10%. Junto ao Nordea, que soma cerca de 700 milhões de euros (3,17 bilhões de reais) supostamente lavados, já são quatro os bancos nórdicos utilizados como lavanderias de dinheiro russo de procedência duvidosa nos países bálticos.

“Alguns países na área do Báltico são muito vulneráveis à lavagem de dinheiro, especialmente procedente da Rússia”, advertia em um comunicado em janeiro passado Pedro Felicio, então especialista do Europol em lavagem de capitais. A pessoa que lidera agora as investigações da polícia europeia sobre esse tipo de delito não quis conceder entrevista ao EL PAÍS.

O passado soviético, a proximidade com a Rússia e o conhecimento difundido do idioma são as chaves para que os bálticos estejam na primeira linha da lavagem de dinheiro russo na Europa

Os especialistas concordam que o passado soviético destas repúblicas, sua proximidade geográfica —apenas 300 quilômetros separam Tallin de São Petersburgo—, o uso e conhecimento difundido do idioma russo (20% e 25% da população da Estônia e Letônia o falam, respectivamente) são algumas das chaves para que os países bálticos estejam na primeira linha da lavagem de dinheiro russo na Europa.

Outra chave é que a lavagem de dinheiro começou justamente nos anos posteriores à entrada destes países na UE, em 2004. Naquele momento, “os bálticos tinham menos experiência e uns sistemas de controle muito mais brandos que os demais membros da UE, e os fraudadores aproveitaram” durante mais de uma década, explica Martini. Era uma oportunidade para possíveis estelionatários ou delinquentes ligados à Rússia, que ainda tinha muita influência em nível político e econômico sobre as três repúblicas bálticas.

A Bloomberg estima que desde que se tornaram independentes da URSS, em 1991, 800 bilhões de euros foram lavados nas três repúblicas bálticas

O fluxo de dinheiro ilegal procedente da Rússia não é novo. A Bloomberg assinala no último número da sua publicação QuickTake (julho-dezembro 2019) que desde o colapso da URSS a quantia de dinheiro de “origem duvidosa” que saiu da Rússia chega a 800 bilhões de euros, um pouco menos que o PIB anual dos Países Baixos. Mas o uso de bancos nórdicos para lavar capital representa uma novidade para as autoridades da UE.

Embora ninguém tenha sido julgado ou preso até o momento, o escândalo chamou a atenção em Bruxelas e Frankfurt, sede do Banco Central Europeu, abrindo um debate sobre a necessidade de melhorar os controles para identificar e conter de maneira conjunta os crimes econômicos, especialmente a lavagem de dinheiro.

A UE não tem um órgão dedicado a detectar as fraudes. O que há é um supervisor centrado em manter a estabilidade dos bancos. Assim, quase toda a responsabilidade por possíveis fraudes recai sobre os supervisores bancários nacionais, o que dificulta investigações que exigem uma coordenação de vários países. Prova disso é que as autoridades dinamarquesas e estonianas continuam acusando-se mutuamente pelo escândalo, enquanto a investigação continua aberta.

Outros esquemas fraudulentos

Desde que entrou na UE e passou a se submeter a um controle mais rigoroso, a Letônia e a Lituânia também sofreram graves casos de lavagem de dinheiro russo através de seus bancos, ou de filiais de bancos estrangeiros em seu território. No caso da Lituânia, o esquema da fraude (conhecida como Troika Laundriomat) era parecido com o da Estônia, mas envolvia outras companhias intermediárias e também o dono do UKIO Bankas. “Agora ele está sendo perseguido pelas autoridades do país, mas segundo algumas informações jornalísticas encontra-se foragido na Rússia”, revela Maira Martini, especialista da Transparência Internacional. “O UKIO Bankas tinha uma maior carteira de clientes não residentes [estrangeiros] em comparação com seu tamanho”, afirma. Algo que é claramente suspeito.

Na Letônia, o esquema de lavagem de dinheiro era diferente do da Estônia porque quase sempre envolvia um cidadão ou uma empresa da Moldávia, segundo o OCCRP. “Muitos bancos não faziam seu trabalho [de averiguar a origem dos depósitos]. Mas parece que agora puseram ordem e reforçaram o sistema supervisor [da Lituânia]”, conclui Martini.

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