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O coquetel de descontentamento na Colômbia encurrala Iván Duque

Protestos dos últimos dias canalizam o cansaço em relação a carências que se arrastam há décadas

Um agente em frente a uma estação de policial, em Santander, na Colômbia.
Um agente em frente a uma estação de policial, em Santander, na Colômbia.LUIS ROBAYO (AFP)
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A Colômbia se juntou, desde quinta-feira, à onda de protestos que nas últimas semanas sacudiu vários países da América do Sul. O caso colombiano é particular, pois os movimentos sociais foram historicamente eclipsados pelo conflito armado. As razões da explosão desta semana são diversas, mas confluíram na hora de canalizar o descontentamento com o Governo de Iván Duque e a exigência de reformas para aliviar carências que se arrastam há décadas.

O país amanheceu neste sábado com relativa tranquilidade depois de uma noite marcada pelo toque de recolher na capital, Bogotá. Depois da maciça manifestação da quinta-feira e dos protestos do dia seguinte, Duque decidiu colocar o Exército na rua. A tensão disparou, enquanto a confusão e a desinformação semearam o medo na população. Na tarde deste sábado houve novos panelaços e protestos em todo o país. Um jovem foi gravemente ferido ao ser atingido por um projétil disparado pela tropa de choque. As convocações, a maioria espontânea, pedem que as pessoas saiam às ruas de maneira pacífica e festiva.

O amálgama de reivindicações sociais é amplo. Em sua resposta às declarações de Duque diante da greve de quinta-feira, o congressista Mauricio Toro, porta-voz da oposição política, tentou fazer um resumo: “Saíram às ruas os trabalhadores que exigem condições de trabalho e de aposentadoria realmente equitativas para superar o fosso escandaloso de desigualdade que existe na Colômbia”. Levantaram a voz indígenas, afro-colombianos e camponeses, além de mulheres, da comunidade LGTBI e do movimento estudantil. “O país grita que o Governo não pode ficar parado diante do assassinato de líderes sociais”, acrescentou Toro. Estas são algumas das causas do mal-estar social.

As políticas econômicas

Formalmente, a convocação da greve nacional veio das centrais operárias. O Comando Nacional Unitário, que reúne várias dessas organizações, convocou desde outubro a mobilização contra o pacotaço de Duque, como são chamadas várias de suas políticas econômicas. A Colômbia é um país muito desigual e, embora a economia seja uma exceção na região –cresceu 3,3% no terceiro trimestre–, o desemprego aumentou até voltar ao número simbólico dos dois dígitos. Os sindicatos se opõem com particular ênfase às reformas trabalhista e previdenciária. O Governo sustenta que essas reformas não foram definidas e serão concertadas, mas os trabalhadores argumentam que vários porta-vozes do Executivo indicaram que elas visam a flexibilização trabalhista e o enfraquecimento da Colpensiones, o organismo estatal que administra as aposentadorias, em favor dos fundos privados. Além disso, o Governo deve voltar a passar pelo Congresso uma reforma tributária que foi objeto de resistências com a qual já contava, mas que foi derrubada pela Corte Constitucional. Um dos primeiros pedidos dos organizadores da greve é a retirada da reforma tributária.

A oposição ao acordo de paz

Coube a Duque implementar um acordo de paz do qual foi crítico feroz. O ambicioso pacto, além do desarmamento das Farc, pretendia transformar os territórios mais atingidos pela guerra e fechar as fissuras entre o campo e a cidade. Durante a campanha, o mandatário se propôs a modificar os acordos sem “rasgá-los”, como reivindicam os setores mais intransigentes de seu partido. Mas, no poder, percebeu que o acordo goza de considerável apoio da comunidade internacional e de diversos setores na Colômbia. O presidente insistiu em apresentar em março suas objeções a uma lei sobre o sistema de justiça transicional que já havia passado pelo filtro da Corte Constitucional e sofreu uma estrondosa derrota no Congresso, que deixou claro que carece de maiorias para levar adiante suas iniciativas.

O incessante assassinato de líderes sociais

Embora o assassinato de líderes sociais já viesse do Governo de Juan Manuel Santos, durante o de Iván Duque o massacre continuou. Desde 2016, depois dos acordos de paz, 486 líderes comunitários e ambientais foram assassinados, de acordo com a Defensoria do Povo. E neste ano, de janeiro a novembro, o Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos recebeu informações de 106 casos, dos quais pode documentar 60.

O medo dos ‘falsos positivos’

Outra das reivindicações acumuladas ao longo do ano tem a ver com a atitude do Exército colombiano, que aponta para um retrocesso em matéria de direitos humanos e o retorno dos falsos positivos, assassinatos de civis por agentes do Estado, denunciados pela oposição. A morte de oito menores em um bombardeio contra dissidentes das Farc, que foi escondido da opinião pública; o assassinato de Dimar Torres, ex-combatente da guerrilha, nas mãos de soldados; e as informações errôneas sobre a Venezuela que o Governo apresentou às Nações Unidas empurraram muitos cidadãos para as ruas.

Universitários nas ruas

O movimento universitário se mostrou como outra das grandes frentes abertas. Os estudantes estiveram nas ruas durante praticamente todo o mandato de Duque e em vários momentos se tornaram o motor dos protestos. Uma de suas principais demandas é o aumento dos investimentos nas universidades públicas e, principalmente, que o Governo cumpra uma série de acordos firmados justamente depois de dois meses de mobilizações sustentadas. Segundo os estudantes, o Governo está fechado para dialogar com eles.

A agenda anticorrupção

Em uma sociedade cansada de corrupção, em meio a escândalos como as ramificações locais do caso Odebrecht, a agenda anticorrupção é outra frente desassistida. Pouco depois da posse de Duque, a chamada consulta anticorrupção, uma proposta para endurecer as sanções promovida por setores da oposição, não conseguiu superar o mínimo exigido em agosto do ano passado, mas obteve uma votação histórica de mais de 11 milhões de votos, superior inclusive à conseguida por Duque nas eleições presidenciais. O mandatário prometeu abraçar essa agenda, mas no final permitiu que as propostas da consulta fossem enfraquecidas no Congresso. Sua principal promotora, Claudia López, foi eleita prefeita de Bogotá nas eleições de outubro, onde houve um avanço significativo das forças alternativas.

Com mais de 10 milhões de votos, um número inédito, Duque foi eleito o presidente mais jovem da história recente da Colômbia. Sua posse, em agosto do ano passado, com 43 anos, enviou uma mensagem de renovação. Em seus discursos, propôs superar a polarização que tomou conta da sociedade desde a negociação do acordo de paz com as Farc, alimentada pelo próprio partido do Governo, o Centro Democrático do ex-presidente Álvaro Uribe. Mas não conseguiu fazer isso durante esses 15 meses, em parte por sua ambiguidade diante da implementação integral do pacto e de sua relutância em dialogar, com um clima de confronto ideológico que transborda para outras frentes.

Pelo contrário, Duque enfrentou uma crescente mobilização social coroada com a maciça greve nacional da última quinta-feira, bem como os tumultos e os maciços panelaços que se repetem desde então. Desde sua própria eleição começou a crescer o slogan “resistência” entre ativistas de todas as vertentes que se declaram vigilantes, e o Governo caiu em um fosso de impopularidade, com uma desaprovação que chega a 69% nas pesquisas. Paradoxalmente, essa desconexão é especialmente pronunciada entre os jovens.

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