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Tiro que matou a menina Ágatha partiu de PM “sob forte tensão”, diz inquérito

Após ouvir testemunhas e fazer perícias e a reconstituição do crime, Polícia Civil indicia agente por homicídio doloso. Acusado teria tentando atingir dois homens em uma moto, mas o projétil ricocheteou e matou a garota

Vanessa Francisco Sales leva uma boneca que foi de sua filha, Ágatha Félix. Está de mãos dadas com Adegilson Félix, seu marido e pai da menina, durante o velório.
Vanessa Francisco Sales leva uma boneca que foi de sua filha, Ágatha Félix. Está de mãos dadas com Adegilson Félix, seu marido e pai da menina, durante o velório. SILVIA IZQUIERDO (AP)
Felipe Betim
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O tiro que atingiu — e matou — a menina Ágatha Félix na noite do dia 20 de setembro partiu de um policial militar lotado na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Morro da Fazendinha, no Complexo de Favelas do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro. Esta é a principal conclusão do inquérito da Delegacia de Homicídios da Polícia Civil, que indiciou o PM por homicídio doloso, segundo confirmou a corporação por meio de nota. Está previsto que o Ministério Público Estadual receba ainda nesta terça-feira o documento. Caberá ao organismo decidir se pede a abertura de um processo criminal contra o agente ou o arquivamento do inquérito.

As investigações se encontram sob sigilo. Mas, de acordo com a Polícia Civil, as apurações apontam que "houve erro de execução" do policial, que "tentara atingir dois ocupantes de uma moto que passava pelo local".  Mas o projétil ricocheteou e acabou atingindo e tirando a vida da pequena Ágatha, que tinha apenas oito anos. Ela estava dentro de uma Kombi voltando para sua casa, ao lado da mãe. A menina chegou a ser levada às pressas para o Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha, mas não resistiu aos ferimentos. A família da menina reclama da falta de acesso ao inquérito e garante que só ficou sabendo do indiciamento do agente pela imprensa nesta terça-feira. Já a Delegacia de Homicídios afirma ter notificado os familiares na noite de segunda.

De acordo com as revelações do jornal O Globo, os homens na motocicleta estavam fugindo de uma blitz. O rapaz que estava na garupa levava uma esquadria de janela feita de alumínio, mas que foi confundida com uma arma por um agente sob "forte tensão", segundo o relato de testemunhas que constam no inquérito. O transtorno do policial se devia ao fato de que um colega morrera três dias antes. O agente chegou a participar da reconstituição da morte de Ágatha no dia 1 de outubro. E, segundo afirmou uma fonte da investigação ao jornal O Globo, se encontra "muito mal e diz o tempo todo que não queria ter acertado a menina". O Pacote Anticrime enviado ao Congresso pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, prevê que os agentes que aleguem "escusável medo, surpresa ou violenta emoção" após matar podem ficar sem nenhuma punição, cumprindo a promessa do presidente Jair Bolsonaro de ampliar o chamado excludente de ilicitude. Essa parte foi excluída do projeto pelos deputados na Comissão de Segurança Pública da Câmara logo após a morte de Ágatha, mas poderá ser incluída novamente no plenário.

Testemunhas já asseguravam logo depois do ocorrido que não houve tiroteio entre traficantes e policiais no momento do crime, ao contrário do que afirmara a Polícia Militar. Na ocasião, a corporação emitiu uma nota afirmando que equipes policiais foram atacadas por criminosos em diversas localidades e de forma simultânea. No início de outubro, quando a Polícia Civil fazia a reconstituição da morte da menina, os agentes que estavam no local apresentaram uma outra versão: a de que um homem que estava na garupa de uma moto havia passado atirando, motivo pelo qual revidaram. Além disso, entre 10 e 20 policiais invadiram o hospital Getúlio Vargas, para onde a garota tinha sido levada, e tentaram persuadir os médicos a entregarem o projétil tirado de seu corpo, segundo informou a revista Veja no início de outubro.

Ainda de acordo com o jornal carioca, um relatório do Instituto de Criminalista Carlos Éboli entregue à Delegacia de Homicídios da Capital — chefiada pelo delegado Danilo Rosa e também responsável pelo caso Marielle Franco — concluiu que um fragmento de projétil encontrado no corpo de Ágatha apresenta ranhuras idênticas à do cano de fuzil utilizado pela Polícia Militar. Por sua vez, a Polícia Civil afirmou que o inquérito "tomou como base depoimentos de testemunhas, de policiais militares em serviço na Unidade de Polícia Pacificadora da região, que estavam no local do crime, diversas perícias e o laudo da reprodução simulada, realizada em 1 de outubro". Segundo o delegado Marcus Drucker, que conduziu o inquérito, "a perícia apontou que o projétil se partiu em um poste, e um fragmento ainda bateu na tampa do motor da Kombi antes de atingir a vítima".

Os investigadores pediram o afastamento do policial e a proibição de contato com testemunhas que não sejam policiais militares. Em nota enviada pela assessoria de imprensa, a Polícia Militar do Rio garante que está dando "o apoio necessário" à Delegacia de Homicídios, enquanto que "em paralelo segue a apuração interna através do Inquérito Policial Militar". Também esclareceu que o suspeito de ter efetuado o disparo "está afastado de suas atividades nas ruas" — mas se encontra em liberdade — e reforçou sua solidariedade à família de Ágatha.

O governador Wilson Witzel (PSC) ainda não se pronunciou sobre o trabalho da Polícia Civil. Em seu Twitter, limitou-se a parabenizar, às 14h32, a Polícia Militar por uma apreensão de drogas no Complexo da Maré. Em outubro, diante da notícia de que agentes invadiram o hospital para recolher o projétil, chegou a tuitar: "Minha posição é firme: tudo será apurado com rigor. Os fatos, se comprovados, são inadmissíveis. Os culpados serão punidos". Eleito prometendo atirar "na cabecinha de criminosos", sua política de segurança, marcada por um endurecimento tanto retórico como operacional, vem recebendo duras críticas de movimentos sociais e especialistas por estimular a violência policial e acabar com a vida de centenas de pessoas, sejam elas criminosas ou não. O Rio tornou-se epicentro da violência estatal no Brasil, com recordes de ocorrências mês a mês: entre janeiro e setembro deste ano, 1.402 pessoas foram mortas "por intervenção de agente do Estado", segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia vinculada à administração estadual. Essa cifra representa mais de 30% de toda a letalidade violenta do Estado.

Esses números, mesmo altos, se referem apenas aos casos em que o policial assume ter matado uma pessoa e registra sua versão em Boletim de Ocorrência, alegando sempre troca de tiro ou legítima defesa. Os dados não consideram as execuções cometidas por agentes que agem nas sombras ou por milícias, formadas majoritariamente por policiais e bombeiros da ativa ou da reserva. Nesses casos, as mortes são registradas apenas como homicídios, mesmo quando as suspeitas apontam para a polícia desde o início das investigações. Como no caso Ágatha. Com as conclusões da Polícia Civil, tudo indica que a menina foi, sim, mais uma vítima inocente do Estado. Cabe agora ao Ministério Público Estadual e ao Tribunal de Justiça do Rio decidir se denunciam o agente da PM e abrem um processo criminal.

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