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A Amazônia também é negra

Floresta abriga cerca de 150 das mais de 3.500 comunidades quilombolas do Brasil. Deputados estaduais e federais do Amapá fazem pressão por compra de territórios

Ísis Tatiane, liderança quilombola na Amazônia.
Ísis Tatiane, liderança quilombola na Amazônia.Lilo Clareto/ISA

O Brasil olha para a Amazônia, e já associa a região aos indígenas e às comunidades ribeirinhas. “Mas acaba esquecendo e invisibilizando a Amazônia negra. Não há narrativa sobre isso. Dos anos 1990 para cá, estamos brigando para levantar essa pauta". Quem fala é Isis Tatiane da Silva, historiadora de 38 anos e uma das lideranças do quilombo Criaú, no Amapá. A maior floresta tropical do mundo abriga aproximadamente 150 das mais de 3.500 comunidades quilombolas do Brasil, de acordo com a Fundação Palmares, do extinto Ministério da Cultura.

A apenas oito quilômetros de Macapá, é nas margens íngremes do rio Curiaú, afluente do Amazonas, que erguem-se as casas do Criaú, a segunda comunidade do país e a primeira da Amazônia a receber a titulação de território quilombola, há 23 anos. Com população de 1.500 pessoas, a existência do Criaú remonta há 200 anos, quando negros escravizados foram levados para a região. Hoje, 76% da população do Amapá é negra, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O estado tem cinco quilombos com terras tituladas e 45 em processo de titulação. 

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A Constituição brasileira de 1988 concede aos quilombos o direito às escrituras de suas terras, como uma forma de reparação. No momento, apenas 220 dos mais de 3.000 quilombos possuem esse documento. Cada caso é analisado individualmente e deve passar por 20 passos administrativos até a concessão, em um processo que pode durar mais de dez anos. No momento, todos os processos de concessão estão paralisados pelo Governo federal.

"Quando se fala de preservação da Amazônia, e se esquece que também há uma população negra que foi trazida para cá, à força, no período de expansão territorial do país e que esse povo também lutou com os povos daqui, torna invisível nossa existência. Viemos para cá forçados, mas sempre reconhecemos os povos originários, somamos nossos saberes e nossa luta com eles", afirma Tatiane (como gosta de ser chamada). Na última semana, ela falou sobre sua militância desde os 16 anos pelos direitos quilombolas no encontro Amazônia Centro do Mundo, que reuniu os povos da floresta, cientistas e ativistas ambientais na Terra do Meio, no estado do Pará.

Apesar do reconhecimento formal das terras, o Criaú ainda sofre com invasões, segundo conta Tatiane. "Hoje em dia, os maiores invasores são deputados estaduais e federais, os caras grandes da política do Amapá", diz a líder quilombola, sem citar nomes, já que ela vive sob ameaças. "Eles chegam na surdina e oferecem um valor em dinheiro para um quilombola ceder a terra. Alguns aceitam e aí complica, porque a gente luta contra o inimigo de fora e contra os de dentro, porque tem irmãos nossos vendendo nossas terras", lamenta.

Uma das estratégias adotadas pelos quilombolas para proteger seu território é criar uma espécie de "cerca viva" nos limites das comunidades. "Muita gente migrou para a cidade, em busca de melhores condições de vida, mas acabaram trabalhando na construção civil ou em trabalhos domésticos e agora está voltando. O que estamos fazendo é alocá-los nas imediações dos limites da terra, para serem os olhos vivos da nossa comunidade e, assim, manter o território sem invasões", explica Tatiane.

O Criaú fica em uma Área de Proteção Ambiental (APA) que abriga, no total, cinco comunidades quilombolas. Um dos conflitos com o Governo diz respeito ao uso da terra para o roçado. "O povo quilombola, assim como o povo indígena e os ribeirinhos, vive da agricultura de subsistência. O que acontece é que, como estamos em uma APA, a polícia vem e diversos jovens negros são presos por construírem uma pequena roça para sobreviver. O Governo quer nos impor um plano de manejo da terra, mas nós queremos construir esse plano junto com eles, queremos ser ouvidos, porque a gente sempre protegeu aquele espaço sem degradar a natureza", frisa Tatiane. O Amapá é considerado o estado mais preservado do Brasil, com 95% dos seus ecossistemas naturais intactos, de acordo com os números do Ministério do Meio Ambiente.

Enquanto as autoridades pressionam os quilombolas, há grandes plantações de soja —devidamente licenciadas— nas imediações do Criaú. "Nos últimos dez anos, aumentaram muito os casos de câncer em nossa comunidade, principalmente câncer de estômago, pâncreas e esôfago. Desconfiamos que é por conta dos agrotóxicos que eles pulverizam nas plantações de soja e que acabam chegando aos nossos rios, de onde tiramos nosso sustento, como os peixes. Quando a gente fala, somos ameaçados", diz a líder quilombola.

Tatiane critica o presidente Jair Bolsonaro, que já afirmou que a proteção ambiental em terras indígenas e quilombolas "dificulta o progresso" do país. "Isso não é verdade. Só queremos poder viver nos nossos territórios, viver da agricultura de subsistência, sem que nos matem. Só queremos preservar nosso canto e viver do que tiramos da terra. É muito fácil eles chegarem lá e quererem tirar a gente do nosso território, mas eles têm que entender que a gente tem toda uma responsabilidade com a natureza e não serão as autoridades ou os cientistas que vão nos dizer como viver".

Em 2018, a líder quilombola foi uma das impulsoras de uma carta assinada pela Rede de Mulheres Negras da Amazônia que chegou até Brasília e conseguiu frear um projeto de construção de um porto graneleiro às margens do rio Amazonas, que desembocaria em comunidades quilombolas. "Meus avós morreram sem ver nosso território demarcado. Hoje, lutamos para proteger não apenas nosso quilombo, mas todas as comunidades da floresta", diz ela.

Por muito tempo, Tatiane viveu "com horário para sair de casa e horário para voltar", devido às perseguições e ameaças políticas. "E tinha sempre que ligar para o Ministério Público Federal para comunicar todos os meus passos", acrescenta. Quando a vereadora Marielle Franco foi assassinada no Rio de Janeiro, em 14 de março de 2018, seus familiares temeram também pela sua vida. "Meu pai, principalmente, ficou muito preocupado, mas se for para morrer lutando, eu vou morrer lutando. No movimento quilombola, a gente não morre, a gente toma. E quando um tomba, vira adubo para fortalecer a luta. Eu não quero ser mártir, mas quero que as pessoas respeitem nossos direitos. Só conhece realmente a Amazônia quem vive na Amazônia". 

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