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Coluna
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A cultura humilhada e relegada ao Ministério do Turismo

Assim que este Governo nasceu, percebeu-se imediatamente que a rica cultura brasileira seria a gata borralheira que não interessava a ninguém

Juan Arias
Protesto, em março de 2016, contra a extinção do Ministério da Cultura durante ocupação do Palácio Capanema, no centro do Rio.
Protesto, em março de 2016, contra a extinção do Ministério da Cultura durante ocupação do Palácio Capanema, no centro do Rio.Tânia Rêgo (Rio de Janeiro)
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No turbilhão de notícias políticas que agitam o Brasil, passou despercebida a grave decisão do presidente Jair Bolsonaro de relegar a cultura ao Ministério de Turismo. Assim que este Governo nasceu, percebeu-se imediatamente que a rica cultura brasileira seria a gata borralheira que não interessava a ninguém.

O primeiro Governo já nasceu com a cultura sem a categoria de ministério. Primeiro, foi abandonada no Ministério da Cidadania. Ali tampouco parece ter interessado, e agora Bolsonaro acaba de aprisioná-la no Ministério do Turismo. Será que a cultura mete tanto medo, ou é um caso de desprezo por algo que se considera inútil?

Quando comecei aqui como correspondente deste jornal, da sede em Madri me pediam apenas temas culturais. A política lhes interessava menos. Meu primeiro artigo, dos milhares que já escrevi sobre este país, foi sobre um novo disco de Chico Buarque que acabava de sair. O Brasil interessava à Espanha, no início dos anos 2000, principalmente por seu despertar cultural.

A pergunta que deve ser feita é por que existe esse medo da cultura. Talvez porque ela, em todos os seus aspectos, do artístico ao literário, seja um poderoso instrumento de libertação. A cultura nos conscientiza da riqueza de dar vida a algo novo e inesperado. É sempre uma explosão de vitalidade no nível pessoal e coletivo. Os países mais cultos são também os mais livres e com melhor qualidade de vida.

A cultura não pode ser vista como algo que se refere apenas a uma elite. A cultura é música, é arquitetura, é poesia, é tudo o que o ser humano é capaz de expressar de mais positivo. É o fruto de tudo que nasce. A cultura nos torna não só mais livres, como também mais pacíficos, mais acolhedores do novo, mais abertos ao diálogo e mais afastados da violência. A cultura traz sempre os gérmens de uma revolução latente para ampliar os horizontes da vida. Assusta os intolerantes porque cria novos espaços de felicidade, de prazer do espírito e até da carne.

A cultura cria democracia, abre as asas do pensamento positivo. Assim a enxergava o grande poeta brasileiro Ferreira Gullar, quando afirmava: “Não quero ter razão, quero ser feliz”. A incultura, a vulgaridade e a intolerância se refletem na linguagem. Com a força e sutileza da poesia de Gullar, contrasta, por exemplo, a linguagem dos exacerbados do bolsonarismo: “O Jair [Bolsonaro] tinha que dar uma porrada nesse filho da puta”, afirma Fabrício Queiroz em uma gravação, referindo-se ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A incultura degrada até a linguagem, uma das maiores invenções do ser humano. E é a falta dela que arrasta para a violência que nasce verbal e acaba em morte.

O conceito de cultura vai além da arte e de sua fruição, ela sempre foi associada à civilização e ao progresso. O contrário da cultura é a barbárie, a degradação dos melhores valores da humanidade. A etimologia da palavra cultura, do latim, evoca o cultivo da terra. É a que cria os frutos, e por isso sempre esteve relacionada com a vida, com tudo o que surge de novo, não com a morte. A cultura amedronta quem aposta na violência e na morte, no lado negativo das coisas e não na criação. Isso influencia hoje os regimes políticos autoritários, negativos, de confronto, nos quais diálogo é sacrificado no altar das intolerâncias. Todos os autoritarismos da história desprezaram a cultura porque lhes dava medo. Ela é incompatível, em todos os seus aspectos, com quem aposta em políticas de morte. Todos os nazismos e fascismos acabaram queimando livros, amordaçando a expressão e o pensamento e humilhando a cultura.

Um dos sintomas de que no Brasil, e não só aqui, está nascendo a incultura da morte em vez da vida, da intolerância em vez do diálogo, é esse desprezo pela cultura que chegou ao cúmulo de sujar com insultos vulgares a maior atriz deste país, a nonagenária Fernanda Montenegro. Todo isso porque, além de uma grande artista, sempre foi uma defensora das liberdades.

Sim, nada reflete melhor do que a afirmação do poeta Gullar, a quem a incultura da intolerância forçou ao exílio, que sempre é preferível ter felicidade a querer ter razão a qualquer custo. Um governo que despreza e até combate a força vital da cultura, cedo ou tarde está fadado ao fracasso, já que tentar matar essa força criativa é como querer eliminar a própria vida. Ou, como dizia o outro grande poeta brasileiro, Manuel de Barros, “é como querer carregar água em uma peneira”. Podem erguer muros de intolerância. Será inútil. Já vi plantas nascerem entre as rachaduras do cimento.

Os cultivadores de morte se esquecem de que nem as grades da prisão nem as torturas nem os exílios forçados serão capazes de matar esse instinto de vida e felicidade que caracteriza aos humanos. Foi no exílio na Argentina que Gullar escreveu seus melhores versos em Poema Sujo. Queiram ou não, todos os governos castradores e perseguidores da cultura acabarão derrotados pela força vital do instinto de vida daqueles que se recusam a ser escravos.

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