_
_
_
_
_

O poema que viralizou e pelo caminho perdeu seu autor

Ensaio analisa o espantoso caso dos versos de Ben Clark que fizeram sucesso na Internet em suas 250.000 variações

Ben Clark, fotografado essa semana em uma rua do bairro madrilenho de Lavapiés.
Ben Clark, fotografado essa semana em uma rua do bairro madrilenho de Lavapiés.
Sergio C. Fanjul

Em um dia do qual não se lembra com clareza, o poeta Ben Clark (Ibiza, 35 anos) escreveu um poema. Depois, esse poema acabou reunido junto com outros no livro La Mezcla Confusa (A Mistura Confusa), que ganhou o Prêmio de Poesia Jovem Félix Grande. O dia em que o volume foi impresso foi o último dia em que o poema esteve sob domínio do poeta porque, como se costuma dizer, a poesia não é só de quem a escreve, e sim também de quem a lê. O que Clark não esperava é que aquele poema fosse apropriado por outras pessoas em tal medida: o poema viralizou, ficou totalmente fora de controle e sofreu metamorfoses alucinantes.

Mais informações
A frase sobre os “fascistas do futuro” que José Saramago nunca disse
Um parênteses para abraçar a esperança de um ano novo mais doce

Em determinado momento do ano de sua publicação, 2011, o poema entrou no Twitter e até hoje em dia continua ricocheteando pelas esquinas da Internet, montado em ondas eletromagnéticas e atravessando fibras óticas, repetidamente projetado em milhares de telas. O autor não o acompanhou em sua viagem: “Na verdade, é como se o que aconteceu fosse completamente alheio a mim, como se o poema não fosse meu”, diz Clark.

De fato, o nome do autor poucas vezes acompanha um texto cuja autoria é atribuída a Mario Benedetti e a diversos tuiteiros que se apropriaram dela. Chegou a se dizer que é um provérbio chinês. O poema, na verdade, se chama El fin último de la (mala) poesía e diz assim: “Tú lees porque piensas que te escribo. / Eso es algo entendible. // Yo escribo porque pienso que me lees. / Y eso es algo terrible” (Em tradução livre: A finalidade última da (má) poesia – “Você lê porque pensa que te escrevo. / Isso é algo compreensível. // Eu escrevo porque penso que você me lê. / E isso é algo terrível”). O próprio autor reconhece que não é um de seus melhores poemas, ainda que funcione dentro de seus limites, “como um Fiat Punto”.

‘A FINALIDADE ÚLTIMA DA (MÁ) POESIA’

"Você lê porque pensa que te escrevo.

Isso é algo compreensível.

Eu escrevo porque penso que você me lê.

E isso é algo terrível".

Sobre as aventuras digitais desse pequeno texto se publica agora Y eso es algo terrible, Crónica de un poema viral (E isso é algo terrível, Crônica de um poema viral), um estudo do professor da Universidade de Salamanca Daniel Escandell Montiel, publicado pela editora Delirio, em que segue as mil e uma peripécias do poema. “O texto foi reproduzido de muitas formas diferentes, por exemplo, sem o título, o que tira sua forte carga irônica”, diz o professor, que contou até 250.000 variações, algumas insignificantes e outras muito significativas. E até um total de um milhão de aparições na Internet, ainda que seja difícil dar dados exatos.

O poema foi compartilhado com fotografia e como parte de um meme, foi tuitado e retuitado, acompanhado de emoticons, corrigido e aumentado, escrito em letras maiúsculas e com erratas, reproduzido em todos os tipos de fontes tipográficas e com todos os tipos de fundo, quase sempre melancólicos. Também desmembrado e utilizado por peças em outros textos mais extensos. Um poema útil como uma caixa de ferramentas. Versões que poderiam fazer parte das escritas não-criativas estudadas por Kenneth Goldsmith. A concisão do texto, seu tom sentencioso, quase um aforismo, teve muito a ver com o sucesso entre o púbico em geral. “Acho que tem um ar de falsa profundidade que tocou muito as pessoas”, opina Clark.

O ‘boom’ na Rede

O texto, além disso, surge em um ano, 2011, em que o chamado boom da poesia da Internet, dos parapoetas, dos poetuiteiros e da poesia pop adolescente tardia (como a define Martín Rodríguez Gaona no ensaio La Lira de las Masas [A Lira das Massas], publicado pela editora Páginas de Espuma) ainda não estava dando o que falar e não havia chamado a atenção dos grandes grupos editoriais que conseguiriam vender dezenas de milhares de exemplares lançando a rede nas turbulentas águas digitais. E ainda que Clark não possa ser catalogado como um desses poetas, o caso é que sua obra viralizou. “Esse é um poema que surge alinhado com os microgêneros, que durante muito tempo foram desprezados pelas editoras e a academia, e que a Internet conseguiu recuperar”, diz Escandell. “Esse poema viral também se encaixa muito bem no gosto dos usuários da Internet por uma poesia muito acessível, em que se valoriza mais a carga emocional do que a carga estética”, acrescenta o professor.

Antes da Internet existiram versos que colonizaram a mente coletiva. “Verde que te quero verde”, por exemplo, de Federico García Lorca, que muitos recitam sem conhecer o autor. O livro de Escandell começa com versos de Manuel Machado: “Hasta que el pueblo las canta / las coplas, coplas no son / y cuando las canta el pueblo / ya nadie sabe el autor” (em tradução livre, “Até que o povo as cante / as coplas, coplas não são / e quando o povo as canta / já ninguém sabe quem é o autor”) e que “lo que se pierde de nombre / se gana de eternidad” (o que se perde de nome / se ganha de eternidade”). Estamos diante de um caso, um entre muitos outros, em que essa popularidade se apoia nas redes sociais e os versos ressoarão talvez eternamente (se é que há algum futuro) mesmo sem o acompanhamento de seu autor, Ben Clark. Cabe a pergunta, parafraseando o poeta, se isso é “algo terrível” ou se isso é “algo compreensível”.

Breve história dos versos apócrifos

O de Ben Clark não é o único poema da história que viralizou (antes e depois da existência das redes sociais) e foi atribuído a autores que na verdade não o são.

Um caso longevo é o do poema cujo começo diz "Primeiro vieram buscar os socialistas, e eu não disse nada, porque eu não era socialista", que circula em diferentes versões e é tradicionalmente atribuído a Bertold Brecht, ainda que na verdade seja do pastor luterano Martin Niemöller.

"Se eu pudesse viver novamente minha vida, na próxima tentaria cometer mais erros", começa o poema Instantes, geralmente atribuído ao escritor Jorge Luis Borges, mas sua autora é a norte-americana Nadine Stair e seu espírito se aproxima da autoajuda.

Quando Gabriel García Márquez morreu circulou um falso testamento poético seu, chamado La Marioneta (O Fantoche), que não era dele. Começava assim: "Se por um instante Deus se esquecesse de que sou um fantoche de pano e me desse um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas definitivamente pensaria em tudo o que digo".

O poema A Morte Devagar, da brasileira Martha Medeiros, viralizou atribuído falsamente ao Nobel chileno Pablo Neruda. Começa assim: "Morre lentamente quem não viaja, / quem não lê, / quem não ouve música".

A Fundação Mario Benedetti alertou em uma publicação no Twitter, em maio de 2018, que um poema chamado No te rindas (Não se entregue) não era de Benedetti, como estava sendo divulgado, talvez por confusão com o poema No te salves (Não se salve), que realmente é do uruguaio.

Mas, além da literatura, o personagem histórico que provavelmente teve mais frases atribuídas seja o físico Albert Einstein, sinônimo de sabedoria e infalibilidade. Por exemplo, essa que diz que os seres humanos só utilizam 10% do cérebro. Ainda que pareça verdade quando se trata de detectar textos apócrifos.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_