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Coluna
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O mundo das mulheres tem que fazer a revolução da linguagem

As mulheres, incluindo as mais pobres aqui no Brasil, começaram a contar suas histórias, as que lhes doíam por dentro sem que pudessem falar

Centenas de milhares de manifestantes compareceram aos atos em Madri.
Centenas de milhares de manifestantes compareceram aos atos em Madri.EFE
Juan Arias

Este século XXI será recordado pela maior revolução feminista da história. Nunca esteve tão viva a temática da mulher, sua luta contra o machismo, seu desejo de recuperar o lugar que sempre deveria ter ocupado e foi impedida pelos preconceitos masculinos. Há quem se atreva a profetizar que este será o século em que a mulher finalmente alcançará a dignidade que lhe cabe e que sempre lhe foi negada.

Esta revolução feminina que todo o planeta abraça, até os rincões mais hostis à mulher, ainda é um paradoxo. É assim neste Brasil-continente, onde, além disso, a maioria das mulheres não é branca. Se por um lado se trata do quinto país do mundo com maior número de feminicídios, também é verdade que nele aparecem hoje, mais visíveis do que nunca, e mais que em muitos outros lugares, a luta da mulher e seus movimentos de liberação. Há no Brasil coletivos femininos em escolas públicas da periferia e nas escolas para ricos nos bairros centrais. Na Grande São Paulo, a maior cidade da América Latina, começaram a ser vistos cartazes que incitam a denunciar a violência contra a mulher. E a mulher começa a estar presente em todas as instituições do Estado e em todos os meios de comunicação.

Perguntei a uma jornalista brasileira que qualidade ela considera que define a mulher hoje, e ela me respondeu: “Nós nos atrevemos a denunciar mais, sem vergonha de sermos julgadas”. A jornalista e escritora espanhola Nuria Varela, autora de Feminismo Para Principiantes, em uma entrevista a Pilar Álvarez neste jornal, destaca que nunca existiu no mundo um “despertar feminino” como hoje. E isso porque a mulher, em todo o planeta, “começou a contar a história que nunca havia sido contada”, que é a história das mulheres com suas lutas pela emancipação do jugo masculino.

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Sim, as mulheres, incluindo as mais pobres e com menos acesso à cultura, por exemplo aqui no Brasil, começaram a contar suas histórias, as que lhes doíam por dentro sem que pudessem falar, as que dão medo nos homens, porque sabemos que são verdadeiras. São histórias de ruptura, de muita dor, mas também de orgulho de estar descendo da indiferença dos subúrbios para o centro das cidades, para gritar que elas existem e devem ser escutadas.

É verdade que ainda, apesar dos esforços dos movimentos de liberação feminina, o poder masculino continua governando o mundo e decidindo o destino cotidiano das mulheres. Mas agora com menos força e convicção, porque percebe, goste ou não o homem, que estamos imersos numa verdadeira revolução. Como salienta Nuria, não se pode esquecer que a mulher vem de uma sociedade onde “carecia de alma, inteligência e consciência”.

E hoje é justamente uma mulher, a jovem sueca Greta Thunberg, de 16 anos, que protagoniza em todo mundo a luta contra a destruição do meio ambiente. Foi ela quem teve a coragem de enfrentar os grandes patriarcas masculinos dos países representados na Cúpula Climática da ONU. É o símbolo da mudança de cunho feminino que o mundo está experimentando.

O que talvez ainda falte a este grande movimento feminino de liberação é começar a fazer também a revolução da linguagem. Sempre, desde a aparição do Homo sapiens, foi a linguagem que moldou a história. Foram as palavras que criaram as ideias e a cultura, a política e a religião. E foi a linguagem que desde o início levou a marca masculina. Dizemos que a história começa com o Homo sapiens, não com a Mulher sapiens também.

Sem palavras não podemos contar nossas ideias e sentimentos, nem nossos sonhos. E hoje, em um mundo de total transformação em todas as esferas, continua sendo a linguagem o que expressa essas mudanças planetárias. O que ocorre é que foi, ao mesmo tempo, a realidade da vida que evoluiu antes das palavras para expressá-la. E as palavras foram também ficando velhas para descrever os movimentos subterrâneos da humanidade em movimento.

Às vezes precisamos de décadas para encontrar a palavra que poderia expressar a mudança já realizada. Assim, ultimamente, nasceram vocábulos como pós-verdade, ou modernidade líquida, para tentar expressar o novo em nossas relações e em nosso modo diverso de contar as coisas.

Será também esta última revolução da linguagem a que poderá servir para culminar dos novos movimentos de liberação do feminino para o político, duas realidades que a linguagem já não consegue mais expressar. Termos como masculino e feminino, esquerda e direita, paz e violência se tornaram antiquados porque a realidade vivida a cada dia neste novo século já é outra, e não sabemos como defini-la.

A revolução da linguagem, seja no tema da liberação da mulher como para o surgimento de uma forma nova de fazer política, será a última conquista da Humanidade, se não quiser ficar restrita à escravidão de palavras que já não são capazes de expressar o novo que está germinando e começou a nascer.

E isso no bom e no ruim. Necessitamos de palavras novas para expressar, seja os movimentos de liberação, como o da mulher, como os de novos fantasmas autoritários, todos eles aliás antifeministas. Não nos bastam as palavras do fascismo ou nazismo, porque além de que a história nunca se repete, apresentam-se com rostos diferentes que assustam mais ainda, porque nos sentimos incapazes de nomear e portanto de compreender.

Quem sabe se não serão as mulheres, mais atrevidas que os homens e com menos medo, apesar de terem sido sempre vítimas, que nos oferecerão um novo renascimento cultural e linguístico, capaz de expressar a força que levam dentro de si.

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