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Clã Bolsonaro inflama temor de contágio de protestos do Chile, mas chance é mínima

Especialistas não encontram eco no Brasil para o argumento do deputado Eduardo Bolsonaro que usou manifestações chilenas como possível justificativa de um novo AI-5. Movimentos sociais enfraquecidos, e uma certa ressaca de atos de rua, mantêm país inerte

Eduardo Bolsonaro, no dia 8 de outubro no Palácio do Planalto.
Eduardo Bolsonaro, no dia 8 de outubro no Palácio do Planalto. Adriano Machado (REUTERS)
Felipe Betim

A América Latina parece estar novamente em ebulição. No Equador, grupos indígenas paralisaram o país e fizeram que o presidente Lenín Moreno suspendesse um pacote de medidas econômicas. No Peru, uma grave intervenção política resultou no fechamento do Congresso por parte do presidente Martín Vizcarra e em mais protestos de rua. Mas é o Chile, onde milhões de pessoas vêm ocupando as ruas nas últimas semanas para expressar um difuso mal-estar social, que vem atraindo mais a atenção da classe política brasileira e da população mais politizada. Alguns apontam suas semelhanças com os mega protestos de junho de 2013. Outros, principalmente a esquerda, enxergam as manifestações como resultado do fracasso das políticas econômicas neoliberais no Chile e do aumento da desigualdade, torcendo para que volte a haver algo semelhante no Brasil. Já a extrema direita, ligada ao Governo Jair Bolsonaro, vem tratando os manifestantes chilenos muitas vezes como "terroristas" e uma ameaça à ordem social no Brasil. A realidade é mais complexa, mas, seja como for, é pouco provável que os protestos se repitam no Brasil, segundo concordam quatro especialistas que conversaram com o EL PAÍS.

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Nesta semana, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), o filho zero três do mandatário, chegou a subiu o tom durante uma entrevista ao insinuar que o Brasil corria risco de ser contagiado por supostas manipulações que estariam acontecendo no Chile. Ao criticar os manifestantes chilenos, afirmou que, caso haja um efeito de contágio no Brasil, um novo Ato Institucional de número 5 poderá ser editado. "Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada". O AI-5 foi o instrumento usado pela ditadura militar brasileira, em 1968, para institucionalizar a perseguição política e o terror cometido pelo Estado durante o período autoritário.

"Essa ideia muito frequente de que haverá um 'contágio' é uma transposição indevida de um termo médico para a vida social. As coisas não funcionam assim", esclarece a cientista política Angela Alonso, professora da Universidade de São Paulo e pesquisadora do CEBRAP. Alonso vem centrando suas pesquisas nas manifestações sociais e vem acompanhando de perto todos os movimentos que eclodiram a partir de 2013. Ela refuta a ideia de que os atos são espontâneos. Explica que, por mais que os atos no Chile tenham um efeito de exibição, a ocorrência de protestos sociais está mais relacionada com "capacidades organizacionais".

Alonso identificou três polos a partir das jornadas de junho de 2013: os movimentos tradicionais (sindicatos e partidos de esquerda), os movimentos autônomos e o campo patriota (liberais, conservadores e autoritários). "Hoje a esquerda tem dificuldade organizacional. Muitos dos movimentos estão sofrendo restrições, com sindicatos passando por uma reestruturação depois do fim do imposto sindical. O campo socialista tem arsenal organizacional, Guilherme Boulos consegue colocar 5.000 pessoas na rua...", explica ela. E acrescenta: "Mas, hoje, quem mais tem recursos e está mais mobilizado é o campo patriota. Na minha pesquisa levantei 70 associações com este perfil a partir de 2011".

A pesquisadora enfatiza, porém, que esse campo patriota não é homogêneo e que boa parte dele não concordaria com uma radicalização autoritária de Bolsonaro. Afirma que o presidente age para manter sua base de eleitores mais fieis, muitos dos quais estão dentro desse subgrupo dos "autoritários" definido em sua pesquisa. "Não é desprezível a capacidade de mobilização desse campo. Também existe o campo dos militares e policiais militares, que também é aguerrido e mobilizado", explica. "Esse grupo causa problemas dos dois lados, porque ele pode ir para a rua a favor da bandeira de intervenção militar, mas, por ser muito mobilizado, muito motivado, também podem pressionar o presidente. Suas declarações buscam não perder a base coesa, além de tirar o holofote da mídia de questões mais importantes, como o [Fabricio] Queiroz e o caso Marielle", opina. O que poderia então causar um movimento de massas como o visto no Chile e em 2013? Talvez pautas transversais, como foram as marchas contra os cortes na Educação neste ano, ou a defesa da democracia — algo que, para ela, até poderia unir movimentos tradicionais de esquerda, liberais, conservadores e autônomos.

Nessa mesma linha opina o cientista político Fernando Bizzarro, para quem a oposição perdeu sua capacidade organizativa. "Não é que as pessoas achem que as coisas estão boas ou não estejam frustradas. Não veremos manifestações massivas porque a oposição e as organizações que orbitam em torno dela deveriam organizar essa frustração, mas estão muito enfraquecidas e não são capazes de fazer isso". Usando o Chile como exemplo, diz que as manifestações contra o Governo de Sebastián Piñera não teriam tido o mesmo sucesso se as organizações de esquerda que orbitam em torno do Partido Socialista não tivessem mergulhado de cabeça após as primeiras mobilizações. "Ainda que houvesse manifestações também contra Michelle Bachelet e os socialistas, o partido tem penetração para limitar a quantidade de oposição que vai sofrer nas ruas", explica. "O partido perdeu as eleições, mas não foram escorraçados como o PT. Segue forte. As organizações ainda conseguem construir algo em cima dessa frustração, transformando-a em algo maior. Nossa oposição não me parece capaz de construir algo nesse sentido", acrescenta.

Bizzarro, assim como Alonso, não acredita que a desigualdade por si só seja o principal fator que impulsou os protestos no Chile — uma vez que o país sempre foi desigual e nenhum país é totalmente igualitário. Ele acredita que o que move o vizinho sul-americano são as expectativas econômicas que o sistema político não foi capaz de sanar nos últimos 30 anos, após a ditadura de Augusto Pinochet. As instituições políticas se moveram para limpar o passado autoritário do país, mas o modelo ultraliberal implantado pelo ditador se manteve em pé.

Diante do otimismo de setores da esquerda com os protestos no Chile, o jornalista Bruno Torturra, um dos idealizadores do canal Mídia Ninja, que teve papel decisivo durante as jornadas de junho de 2013 no Brasil, acredita que a interpretação de cada grupo ideológico no Brasil tem a ver com suas próprias expectativas. "É importante que a gente não projete nossas expectativas frustradas no Chile, como se ele fosse um termômetro do que vai acontecer no Brasil em alguns meses ou anos. Na verdade, no Brasil pode acontecer o oposto. Pode ter um movimento de massa pedindo intervenção militar, ou a favor da Polícia Militar. A gente não sabe", argumenta o jornalista, que acredita que o Brasil vai no sentido oposto das revoltas populares que explodiram recentemente na América Latina.

Torturra também afirma que, assim como em Junho de 2013, no Chile "possivelmente há muito mais divergência entre os manifestantes, entre o que estão sentido na rua, entre o que esperam, ou nas relações que ele têm com a política, do que é possível ver de fora". Interpretar os atos simplesmente como sinal de fracasso de políticas neoliberais pode ser uma visão superficial, ainda que possível, e não dá conta do que de fato está acontecendo ali no Chile. O jornalista também fala em ter certa cautela: "Existe um romantismo, uma glorificação das pessoas nas ruas, que achei que já deveríamos estar imunes. Toda essa energia colocada no sistema vai para algum lugar. Se você não se organiza para canalizá-la para um lugar mais lúcido, mais viável, a gente não sabe onde pode dar", lembra ele, para quem o atual presidente possui um viés "revolucionário", que quer mudar todo o sistema, "resultado da insatisfação do brasileiro com a política como um todo".

Há, ainda, um certo cansaço no Brasil desse modelo de protestos, opina a matemática e filósofa Tatiana Roque, professora da UFRJ. "Não vai acontecer. Posso estar sendo muito pessimista, mas acho quase impossível que haja hoje manifestações como as do Chile ou de junho de 2013. As pessoas estão com muita ressaca de manifestação", argumenta. Ela acompanhou de perto os protestos de junho e os que vieram depois, a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff. "2013 não foi movido só pela insatisfação, mas também pela esperança, pela expectativa de que aquilo fosse dar em alguma coisa. As pessoas vão para a rua quando acham que serve para alguma coisa. Hoje elas estão descrentes, acham que não vai adiantar nada", acrescenta.

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