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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Quando as ruas queimam

Talvez estejamos diante de uma segunda onda de insurreições que parecem seguir, mais ou menos, o mesmo padrão, seja no Chile, no Equador, na França, no Líbano. Por outro lado, pergunta-se por que tais insurgências não ocorrem no Brasil

Vladimir Safatle
Protestos no Chile.
Protestos no Chile. HENRY ROMERO (REUTERS)

“Um mar de tranquilidade”. Fora assim que o presidente chileno Sebastian Piñera havia definido seu país, antes da população ir às ruas para não mais sair, queimar prédios, desafiar toques de recolher, decretos de emergência e ser assassinada pelo seu próprio governo. Até agora 18 mortos, sendo uma criança de quatro anos: algo que seria mais correto descrever como um puro e simples massacre. Depois do exército cometer tais assassinatos, vimos Piñera em cadeia nacional pedindo perdão pela insensibilidade diante dos problemas sociais que ele aparentemente sequer sabia existir.

De fato, os que nos governam parecem ter uma definição muito peculiar de tranquilidade. Isto já aconteceu outras vezes. Em 2011, os países árabes pareciam “tranquilos” até que um trabalhador tunisiano ateou fogo em seu próprio corpo, imolando-se em praça pública, abrindo uma sequência de mobilizações populares que derrubou governos e colocou novamente a política nas ruas. Essa sequência de insurreições acabou por chegar até mesmo ao Brasil, que em 2013 vendia para o mundo interior a versão de que era “um mar de tranquilidade” e de estabilidade tropical.

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Agora, talvez estejamos diante de uma segunda onda de insurreições que parecem seguir, mais ou menos, o mesmo padrão, seja no Chile, no Equador, na França, no Líbano. Começa-se com uma rebelião contra um medida econômica punitiva para os mais pobres: aumento de imposto de gasolina, aumento de passagens de transporte público, criação de taxa em uso de Whatsapp. A pauta parece pontual mas ela rapidamente se alastra expondo um descontentamento profundo e estrutural com as condições econômicas e sociais. Os governos imediatamente agem mobilizando aparatos impressionantes de violência e controle. A França dos coletes amarelos conta presos em manifestações aos milhares. Cenas de jovens secundaristas de Mantes-la-Jolie de joelhos, em fileira e com as mãos na cabeça circundados por policiais rodaram o mundo. Não por acaso, elas pareciam saídas da Segunda Guerra.

Depois de compreender a ineficácia da violência extrema, os mesmos governos passam à negociação. Mas agora descobrem que de nada adianta voltar atrás nas medidas econômicas. A população quer o fim desses governos, ela sabe que as decisões serão sempre tomadas ouvindo interesses que lhes são contrários. Um setor fundamental da sociedade descola-se da sua aderência aos princípios gerais da governabilidade. Ela está disposta a seguir novos rumos.

Este é um ponto central para compreendermos essa segunda leva de insurreições mundiais: elas recolocam em circulação a experiência da luta de classes e de recusa a ser governado por quem tem compromisso com políticas de empobrecimento. Muitos analistas percebem termos dessa natureza como resquícios arcaicos de algum Museu das Ideias Perdidas. Sua aderência à crença de que a história terminou na defesa da democracia liberal tal como a conhecemos até agora os impede de compreender o sentido de processos de desidentificação generalizada com o poder. Processos que eles procuram colocar todas na conta do “populismo” e de formas de “regressão” das massas para fora dos acordos de gestão que pareciam aceitos por todos.

No entanto, é de luta de classe que se trata no que estamos a ver agora. A compreensão de que as políticas de austeridade eram, na verdade, políticas de concentração e de defesa de interesses intocados das elites rentistas espalha-se de forma cada vez mais sistemáticas. A linha de clivagem fundamental reaparece como divisão entre ricos e os economicamente vulneráveis. Pode não existir mais uma consciência de classe, por uma série de razões vinculadas à configuração dos processos políticos contemporâneos com suas dificuldades estruturais em produzir dinâmicas de emergência de corpos políticos convergentes. Há de se lembrar também da demissão genérica de processos de crítica cultural, o que faz com que até as lutas políticas pareçam necessitar de um gramática forjada na indústria cultural, nos quadrinhos e nos filme de super-heróis. Mas o que vemos atualmente são lutas de classe sem consciência de classe, ao menos até agora. O que não significa que a próxima volta do parafuso não seja exatamente a consolidação de uma consciência genérica de classe renovada capaz de articular transversalmente a multiplicidade de experiências de espoliação e exploração.

Por outro lado, pergunta-se por que tais insurgências não ocorrem no Brasil. Até mesmo comentários a respeito da falta de “bravura” do povo brasileiro começam a circular. Quem acredita em explicações psicológicas dessa natureza deveria subir algum dia o Complexo do Alemão a fim de ver ruas com barricadas, com grandes tonéis de concreto construídos pela própria população a fim de impedir a subida de “caveirões” da polícia. Eles poderiam também ver os telhados cheios de projéteis de fuzis militares e ouvir os relatos de mães que contam a história do extermínio de seus filhos pelas “forças da ordem”. Ou seja, a relação entre estado e populações pobres e negras no Brasil só pode ser descrita de forma precisa mobilizando conceitos como “guerra civil não declarada” e “praça de guerra”.

Isto ocorre porque o poder sabe muito bem que as possibilidades de insurreição em nosso país são reais. Pois é praticamente inevitável que tais possibilidades se tornem realidade. No mesmo momento que as ruas de Santiago ardiam em chamas, o mesmo projeto ultraneoliberal autoritário que estava queimando no Chile era implementado no Brasil através da última votação da reforma da previdência. Algumas pessoas devem lembrar que a pobreza não mente. Tais reformas não levarão a classe trabalhadora ao paraíso, como não levaram em lugar algum. Antes, elas levarão a mesma frustração que chilenos e equatorianos expressaram. Os números fazem arder toda ideologia: menos de 3% das famílias se apropriam atualmente de 20% da renda total do país (segundo IBGE). Em 2018, o rendimento do grupo 1% mais rico cresceu 8,4% enquanto o dos 5% mais pobres caiu 3,2%. Isto em um país com taxas de desigualdade impensáveis para o resto do mundo. Tal processo irá apenas se acentuar. Que não nos enganemos: o Chile é aqui.

No entanto, há um dado importante e diferencial no Brasil. Os que ocupam atualmente o governo já se colocam como força anti-institucional. Temos um governo que fala, a todo momento, estar operando uma revolução no país. Por isto, ele mobiliza continuamente a lógica do “governo contra o estado”. Diante de manifestações com as que estamos vendo agora eles podem muito bem associar a mais extrema violência a um discurso de acolhimento. Algo do tipo: “entendo seu descontentamento. Estou, desde que entrei no governo, lutando contra as forças do estado, do parlamento e mesmo do meu partido que procuram me impedir de governar. Peço a vocês mais poderes contra as forças ocultas que dominam a política nacional e não permitem que um não-político como eu atue”.

Isto significa que, assim como em 2013, as força de transformação podem ser colonizadas por processos autoritários no Brasil. Por isto, todo o esforço deveria se dirigir para se preparar a esses processos insurrecionais. Ou seja, todo esforço em direção a trabalhos transversais de convergência e assunção de uma pauta clara de ruptura econômica. Para se ter uma ideia, há dias o candidato democrata Bernie Sanders divulgou seu programa econômico para a próxima eleição norte-americana. Esse programa, de um candidato do Partido Democrata, é infinitamente mais radical do que todos os programas que a esquerda oficial brasileira foi capaz de apresentar. Suas proposições sobre modificação estrutural das relações trabalhistas ao dar aos trabalhadores quantidade igual de assentos nos boards de empresas e garantir que, ao menos, 20% das ações estejam nas mãos do trabalhadores é simplesmente fora da pauta no Brasil. Isso demonstra como não estamos politicamente preparados para o novo round da luta de classes.

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